ÁRIA DO SILÊNCIO - A ELEVAÇÃO

Palavras fluidas não são o que brotam com mais freqüência dos lábios de Shinji. Sua incômoda reserva emoldurou sua fala com a áspera concisão de quem sempre foi forçado a se manter calado. De quem teve que desaprender a beleza destrutiva da comunicação.

A futilidade humana não encontra limites, já disseram. A necessidade de florear ou rasgar palavras, fazendo o "Outro" sentir-se bem, sentir-se mal... mas nunca se encontra a neutralidade para evitar qualquer tipo de sentimento. A final de contas, o Homem nunca deixa de sentir, sua fala é sempre carregada de emoções em relação ao "Outro", buscar neutralidade é impossível; se é possível, é uma busca para tornar-se falso, hipócrita.

Dor é sentir que Shinji não maltrata as palavras para ferir. Mas elas já vêm maltratadas, as poucas que vêm - embora não firam, afastam. Como os espinhos de um animal que não pode buscar conforto no seu semelhante - a dor é a penitência mútua.

Dor é sentir que as torrentes de palavras vindas das infinitas vozes do mundo foram proferidas para sensibilizar os sentidos e a alma. Sensibilizar para o sofrimento, somente para ele, pois espelhar-se no "Outro" é perceber-se desprezado, odiado - a penitência da palavra é solitária. E dolorosa.

Na dor, descobrir o maior medo. A pena por ter nascido é sofrer. Sofrer calado. O grito enclausurado em um coração endurecido por espinhos permanentes, que jamais cicatrizam.

Mas houve um dia em que os espinhos se desprenderam, o sofrimento se encobriu, e a dor, tão pungente, libertou a voz sufocada, tornou-se amor, e as palavras...

... não disseram nada.

No dia em que Shinji encontrou Kaworu, tudo se calou.

Kaworu fora o colo anestesiado que não se feria com os espinhos. Ao contrário, sorria a cada gota de sangue que brotava das próprias mãos ao acariciar o acuado animal. O conforto quente de uma entidade altruísta que viveu pelo bem de um único rejeitado.

A pele albina daquele anjo fora o tecido suave que velara o adormecer do agora longínquo som de palavras ao redor do globo. E, assim, criara um mundo de paz para aquele coração desfigurado por maus-tratos tão ditos... humanos.

As palavras diretas - de serenidade e amor - foram flechas de Eros que violaram a virgindade negra de Shinji para a claridade da harmonia, pela primeira vez tão próxima e... real. Um esconderijo alcançável e que o exonerava de todo o pesar por fugir. Afinal, ele não mais fugia - ele se entregava de corpo e alma ao amor, a dor que ele suportou com forças que inexistiam.

Do Primeiro Contato, nasceu o silêncio. O mais absoluto silêncio. Calaram-se as perversas vozes alheias, calou-se a própria voz de Shinji, a voz da dor, a irritante voz inexpressiva do calado. Criou-se o mundo individual que tinha dois nativos; a voz angelical que se fez ouvir como a voz de Deus que silencia os pecadores tão fiéis. Mas as palavras de Kaworu não eram distantes e vazias como as literárias palavras divinas. Elas trouxeram Shinji verdadeiramente à união, à individualidade na fusão de dois, no gesto do flagelo que se cobriu com as asas de um ser etéreo.

Por um tempo eterno que se estendeu por poucos dias, o silêncio. E, por fim, veio um feliz adormecer.

Feliz.