"Você abre outra fenda em mim sem perceber que ainda estou sangrando
do buraco anterior."


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Capítulo 03 – Da Evasão

De quem é a culpa quando acontece algo ruim? Ela recai sobre a parte mais forte da corrente? Não. Independentemente das leis da física mecânica, da engenharia de forças ou do equilíbrio estático, a culpa invariavelmente cai sobre o elo mais fraco. Sobre o elo enferrujado pelo peso dos que deveriam carregar a culpa... mas que nunca carregam.

"Quadrante quarenta-B, Oeste! Depressa!"

"Repita?"

"Quadrante quarenta-B, Oeste!"

Desordem.

"Kakashi-sensei?"

"Não digam nada, não discutam. Apenas me sigam."

Diziam os livros da Academia Ninja que nada viaja mais rápido do que a velocidade da luz, porém Hatake Kakashi possuía a teoria de que havia uma única possível exceção à regra – as notícias ruins. Sua curta e sutil tese para o Exame de Acesso ao Corpo Docente de Konoha resumia tudo nas seguintes palavras: 'obedecem a suas próprias leis da física'.

E ele confirmou o fato consumado naquele dia.

Era perto das dez horas da noite e o ritmo da vila começara a perder velocidade gradativamente. Os boatos sobre o assassinato da legítima herdeira do Clã Hyuuga haviam corrido em velocidade assustadora, e poucos mesmo afora comunidade ninja ainda os ignoravam.

Alguns reservavam um interesse mórbido pelo acontecido, dado não só a má fama do clã de se impor ao resto da vila por seu tradicionalismo, mas também à própria condição da curiosidade humana doentia. Porém, grande parte da Vila da Folha olhava os boatos com certo pesar exorbitante, lamentando e comentando haver tempo que não ocorria algo daquela magnitude.

Kakashi considerava interessante o modo em que, diante de certos fatos, a tendência humana era de tomar uma postura comovida. Na prática não significava nada.

Alguém podia estar descascando a dita pessoa naquele momento, que se no segundo seguinte ela batesse as botas, o ilustre cidadão citado e pelo menos outros cinquenta e três vírgula nove hipócritas estariam balançando suas cabeças e dizendo 'que pena, era tão jovem'. E talvez até mesmo lamentando um pouquinho aqui e derramando algumas lágrimas de crocodilo acolá.

E esta, em sua opinião, era a essência da raça humana.

Olhos prateados perscrutaram a vila. Ele tinha sangue nas mãos; seus ouvidos ainda zumbiam pelo excesso de giros executados. Tossiu uma tosse seca, sem parar de correr. O ar da noite estava tão espesso que parecia quase pegajoso; agarrando-se à sua garganta, enlaçando-se à sua pele e elevando seus cabelos no vento frio de início de inverno, revestindo-o com sua corrupção carregada e maliciosa...

Neji escapou.

O que era uma maneira válida de dizer que ele havia projetado um ANBU através de duas paredes e embutido outro no pavimento antes de escorregar como sabonete por entre as mãos de uma equipe interrogatória inteira. Formalidades Hyuuga não incluídas.

Ele seguiu, se dirigindo por caminhos erráticos e tentando concentrar-se somente em correr o mais rápido possível através das rotas que se abriam, e não na súbita chuva de kunais e no que aconteceria se o Kaiten não fosse capaz de bloqueá-las a tempo. Cruzou através das ruas ainda lotadas, pulou sobre telhados e ziguezagueou entre a multidão do mercado, os ANBU ainda aos seus calcanhares.

Aquilo, o que quer que fosse, havia se agarrado à sua pele e às suas roupas, enrolando-se ao seu redor, - e parecia tão pesado que por um minuto ele pensou que cairia no chão levado pela carga. Mas o peso não chegava nem ao menos perto de tudo o que ele havia suportado até então... E por isso continuou, como se nada daquilo tivesse a remota chance de o atingir.

"Você sabe o que Himitsu significa?"

Franziu o nariz com o pensamento, incapaz de manter-se realmente imparcial. Meneou a cabeça, girando sobre os calcanhares ao pular no topo de um poste, as mãos desviando outra saraivada de shurikens pelo céu.

Algo respingou em seu rosto.

Era vermelho.

Olhou vagamente para a trilha de sangue no ar, vindo de suas mãos, sem realmente fazer caso dela. Não estava mais usando chakra para repelir as lâminas com o Kaiten. Por que exatamente?

Não saberia dizer.

Saltou do poste três segundos antes do primeiro ANBU na linha de perseguição conseguir com um impulso agarrá-lo pela perna. Enquanto pulava de um prédio para o outro, rapidamente formou os selos – e, de repente, havia cerca de trinta Nejis por todos os lados, alguns com sangue nas mãos e outros não. Eram apenas bunshins e não possuíam capacidade de jutsu, mas era o suficiente para confundir.

Os clones assumiram ordens de se separar e sair da cidade por direções opostas, para que os que o estivessem perseguindo perdessem tempo tentando encontrá-lo no meio da multidão do mercado. Por sorte ainda não havia nenhum Hyuuga no meio da ANBU para saber quem tinha corrente de chakra e quem não. Ainda.

"Himitsu significa..."

Meneou a cabeça rapidamente, cerrando os olhos com força e trincando os dentes, saltando o mais alto que podia. Chutou o ar criando inércia quando a gravidade começou a chamá-lo de volta, aterrissando sobre um cabo de energia elétrica. Seguiu correndo.

O sangue empapado descendo de suas mãos impregnou no cabo bambo debaixo de seus pés, fazendo-o quase escorregar no meio do trajeto, a vantagem de três segundos cair...

E aconteceu no espaço de tempo de um centésimo.

O Ansatsu sacou a katana em suas costas e a lâmina arqueou em um corte de exatidão milimétrica, deslizando contra a base do tendão de Aquiles do garoto.

Neji trincou os dentes quando a dor – rápida e ardida como uma faca cega – entrou em ignição. Virou em direção a seu agressor, irado como um animal acuado.

"Quando você fecha os olhos, o que você vê?"

O corte havia acabado de inscrever uma meia-lua no ar quando a retaliação veio, breve e veloz. Ignorando a súbita ardência em seu tornozelo, Neji equilibrou os pés sobre o fio de eletricidade, pulando em seguida para aterrissar sobre a lâmina da espada do ANBU, que ainda floreava no impulso do golpe. O homem olhou para cima. Contra a luz da lua os olhos brancos do Hyuuga brilhavam uma mistura desigual de ira e mortificação.

O baque do súbito peso adicional fez o ANBU se desequilibrar sobre o cabo elétrico, cambaleando para trás. Sequência de taijutsu – os cinco primeiros golpes entraram furiosamente; os seguintes sendo anulados quando o Ansatsu decidiu abandonar sua espada chão abaixo para se contrabalançar, dando um flick-flack para trás e tomando uma nova postura de combate. Partiu com a intenção clara de deferir um golpe no corpo do garoto... Mas mudou de ideia no meio do trajeto.

Decisão inesperada.

Impacto inesperado.

Neji já estava com os dedos a meio caminho da sequência do Hakke Rokujuuyon-shou, - um chute no corpo seria suportável para desferir seu último ataque... -, quando a trajetória do golpe mudou. O homem deu um passo para frente, fechando a distância necessária para formar o espaço de ataque das Oito Divindades Ofensivas. E deu-lhe um chute preciso no joelho de sua perna de sustentação. Impacto fulminante.

O impacto – também diziam os livros da Academia Ninja – é diretamente proporcional à força do golpe e à elasticidade dos tecidos.

Em termos leigos, Kakashi diria, o choque de um golpe aumenta de acordo com a força utilizada nele e com a resistência de seu alvo. Sendo assim, tendo como finalidade não uma área do corpo que possui certa elasticidade para absorvê-lo, e sim uma articulação rígida como a do joelho, a tensão é muito, muito maior.

Um estalo ressoou no ar, clara evidência de rompimento do ligamento que segurava ossos, músculos e juntas no lugar. A articulação estraçalhou-se, o joelho deslocou-se para trás.

Neji grunhiu, um som de dor aguda escapando de seus lábios.

O desequilíbrio do choque o atingiu, e o ANBU observou enquanto ele despencava do cabo elétrico em uma colisão impetuosa contra o chão. O impacto dessa vez fez a articulação fraturada voltar ao lugar, com um ruído parecido a um 'crec'. O segundo som foi semelhante a um silvo de agonia.

O ANBU aterrissou ao seu lado no momento seguinte, aproximando-se. Neji franziu as sobrancelhas diante daquilo, ofegante, aparentemente sem saída...

Não.

Quando o ninja mascarado menos esperava sua própria espada o atingiu na altura do abdômen, vinda do muro oposto. Lá, de pé na parede e em um ângulo perpendicular com o solo, estava o verdadeiro Neji, - os pés presos por uma nuvem potente de chakra. O bunshin no chão desapareceu no segundo seguinte em que ele ignorou o ANBU e começou a correr novamente parede acima, o joelho estourado instável e reclamando em protesto.

Havia sido o clone que caíra deselegantemente no chão após a queda. O verdadeiro Hyuuga havia se protegido do tombo ao surfar na parede, criando um clone para estatelar-se no seu lugar.

Arremeteu em uma corrida descompensada parede acima, arquejando, mancando, deslizando no sangue que as feridas em suas mãos esfoladas e em seu tornozelo escorriam...

"Hyuuga Hinata foi encontrada morta."

Havia conseguido despistar a ANBU até aquele ponto, mas isso lhe custara grande parte de seu chakra e de seu fôlego. Ele estava exausto e com os pensamentos colidindo dentro da cabeça. Pra onde estava fugindo? Sua mente estava lhe pregando peças de novo? Seria capaz de fazer algo fora de si como daquela vez?

"Você tem culpa no cartório, menino-gênio?"

Ele não tinha pra onde fugir, mesmo que quisesse. Não tinha pra onde correr. Não tinha nem pelo que correr. Não tinha nenhuma real motivação.

"...é inútil, Neji..."

Arregalou os olhos, parando de repente, o choque da interrupção súbita fazendo a articulação de seu joelho balançar outra vez.

Mas ele não a sentiu. Não a sentiu.

Porque à sua frente a visão não era a dos telhados do mercado de Konoha, como a segundos atrás, e sim...

Abaixo de seus pés o chão do campo de trigo era firme, mas escorregadio; poças de sangue viscoso se misturavam com a terra dando-a um forte odor metálico. Vermelho. Aquilo o enojou de uma maneira confusa – ele nunca havia se detido por causa do cheiro de sangue antes – mas parou de correr imediatamente quando o odor do ferro serpenteou ao redor de suas sandálias, enrolou-se entre seus dedos.

O campo de trigo.

Havia tanto sangue ao redor que era quase surreal, réplica idêntica das fotos do arquivo que o interrogador o mostrara. Ele observou com o byakugan enquanto o sangue escorria pela terra, esperando que alguma emoção explodisse dentro dele novamente, que o fizesse voltar a correr e a fugir e a... -

Mas, ao contrário, encontrou apenas a dormência. Ele deveria estar com raiva, ele deveria estar sentindo ódio, mas, ao invés, Neji só queria afundar no solo e dormir. Tudo o que ele tivera lutado para construir e manter estava caindo ao seu redor, e simplesmente porque ele havia dito a Hinata-sama que a ajudaria com seus jutsus.

Seu pé atingiu algo. Neji olhou para baixo.

Era uma mão.

Na luz chocante da lua ele podia ver que ela estava pálida e sem sangue, e que ela tinha um cheiro que ele conhecia muito bem...

Hinata-sama, branca, branca, branca...

O cheiro dela estava em toda a área. À sua direita ele podia detectar o odor rançoso de sêmen e a podridão da urina e do excremento fétido que cobria uma parte da colheita do trigo e da terra. O cheiro era dela.

Tal conhecimento rastejou em seu cérebro, instalando-se em seu peito através de ondas fortes de temor e negação, mas não havia como negar. Ela havia estado deitada ali enquanto era estuprada, cheiro ácido de suor se estabelecia por baixo dos outros odores – e, então, ela havia sido mutilada...

Curvando-se em pelo menos três direções diferentes estavam os rastros quase indetectáveis de Hinata, deslocando sangue, lágrimas e o fedor dos órgãos internos atrás dela, - e Neji sabia.

Ela havia sido massacrada. Eles a haviam cortado em pedaços e a carregado para um lugar onde ele não podia alcançá-la, onde seu juramento genético de protegê-la não poderia encontrá-la. Hinata era família principal e ele família secundária... E ela se foi.

Agora não havia nada além dos odores do sofrimento, do branco da mão e do vermelho do sangue, e por um longo tempo Neji permaneceu lá na luz agonizante da noite, na luz agonizante de sua vida, e respirou morte.

Havia uma nuvem de poeira cobrindo sua visão, e ele piscou para dispersá-la. Ele havia pensado que suas emoções tinham desaparecido, mas não era o caso, porque agora Neji podia sentir o barulho do trovão vindo de dentro do seu peito.

Curioso.

De algum canto estranho e destacado de sua mente ele observou a si mesmo com certo desinteresse. A nuvem de poeira não parecia querer ir embora.

Uma kunai.

"Pare aí, antes que não haja volta!"

O objeto voou em sua direção e ele o segurou entre os dedos, apenas com a vaga noção do que havia feito.

Aquela voz? Ela se parecia em certo grau com a do sensei do Time Sete; o tom de repreensão embutido ligeiramente similar ao que Gai-sensei usava para dizer que descontar a frustração nos outros não dava resultados.

Neji estava na ponta de um telhado, do outro lado da montanha com as faces dos Hokages. Virou-se na direção da voz. Suas mãos seguravam a kunai pela lâmina, empapadas de sangue. Seu joelho estava inchado, um rasgo aberto no tornozelo direito; ele mancava enquanto andava lentamente para longe do limite horizontal.

Era apenas Kakashi? Não... Atrás de Kakashi ele conseguia ver duas outras pessoas.

"Este será o nosso Himitsu... O nosso segredo..."

Hinata estava morta, e ele não podia fugir pra sempre. Nada o ajudaria a seguir adiante. Nem ao menos havia uma real razão. Kakashi se aproximou e as duas pessoas atrás dele começaram a ganhar foco. O byakugan fazia seus olhos verem mais longe do que qualquer outro ser humano, mas por alguma razão ele não conseguia distinguir nada naquele momento.


"HANABI!"

A porta deslizante resvalou em um impulso só, mas antes que Hiashi pudesse entrar no quarto, estacou.

Havia pisado em algo molhado no chão, o contato gelado contra o tabi em seus pés – a poça espirrou escarlate na barra de seu kimono de seda. O líquido escorreu denso pelo futon e encharcou os lençóis alvos em uma palheta contrastante de branco e vermelho.

"Hanabi..."

A menina jazia sobre um emaranhado de lençóis e sangue, as pernas entreabertas. Seus braços estavam cobertos de escoriações e feridas, em sua mão direita ainda pendia a kunai, inutilizada. Ela tinha os olhos prateados vazios, sem brilho, sua face não tinha uma última expressão. Um rasgo em seu abdômen escorria e formava a poça do chão.

Ela simplesmente restava.

"Você já deveria saber há essa altura que não gosto de começar algo sem saber como será o fim."

Tsunade passou a frente de Hiashi, que caiu sem ação ao lado do batente da porta, um som engasgado saindo de sua boca. Ela entrou, enquanto o resto da força policial e a segurança do clã vasculhava o território e as saídas, uma busca que eventualmente se provaria infrutífera. A segunda na linha de sucessão da família estava ali.

Assassinada e mutilada...

"Significa que já tenho tudo planejado há muito tempo."

"Hanabi..." Hiashi sussurrou ao fundo em estado de choque, a respiração vindo curta e oca, os olhos pregados na poça que se estendia no chão. "Não, não, não..."

Ao ouvir aquilo Shizune correu atrás de Tsunade e se uniu a ela em frente ao espetáculo sanguinolento, arregalando os olhos. Observou quando a Hokage levou a mão à boca e desviou o olhar, a bile queimando abrasadora em sua garganta.

Era tarde demais como fora para Hinata? Shizune se ajoelhou em frente ao corpo da menina, os olhos brancos sem foco a encarando sombriamente, quase como um olhar acusador. Colocou as mãos sobre o cadáver, checando os sinais vitais. A artéria femoral também havia sido cortada, e o sangue ricocheteou em seu rosto e nas paredes.

"Maldito seja..." Tsunade murmurou entre dentes, a mão ainda sobre os lábios ao pressentir o que sua assistente estava fazendo. "Maldito seja quem fez isso."

Passos no assoalho. Um homem se ajoelhou ao lado do patriarca imóvel e sussurrou.

"Sinto muito, mas não encontramos ninguém nos arredores do clã, Hiashi-sama..."

Hiashi não disse uma palavra em concordância, em discordância. Ele não disse nada. Porque aquilo não podia ser real. Aquilo era um sonho e logo ele iria acordar, e nada daquilo estaria acontecendo, e logo não haveria ninguém tendo que procurar nenhuma pessoa e nem sentir muito.

O ninja ajoelhado ao seu lado continuou falando, mas as palavras haviam parado de fazer sentido para o patriarca, porque aquele pesadelo já estava durando muito, muito mesmo, e ele estava começando a se preocupar. Sonhos não deviam durar tanto, eles não deviam infligir tanta dor crua, dor tão dilacerante que com certeza já deveria tê-lo acordado a este ponto...

De novo não... Kami, eu não suporto mais perder meus filhos...

Por um segundo Hiashi se perguntou se havia dito aquilo em voz alta, porque a expressão do ninja vacilou enquanto ele tentava fazer o Hyuuga se levantar. Com relutância. Colocou-se de pé apoiando no batente, os olhos treinados na figura da menina. "Ninguém deveria enterrar seu filho... Ninguém... Hiashi, ninguém deveria enterrar seu filho..."


"Você precisa se entregar, Neji."

Foi o que Hatake Kakashi disse em seguida, se aproximando cautelosamente. Dois segundos se passaram. Neji piscou, levando certo tempo para reconhecer quem eram as duas pessoas atrás do jounin. Haruno Sakura e...

"Naruto...?"

A voz saiu do Hyuuga em um sopro, mais distinguindo que perguntando, e o ninja loiro quase se encolheu com o tom incaracterístico de instabilidade e atordoamento que havia nela.

"Eu não acredito, realmente não acredito que você tenha matado a Hinata... Vocês podem ter tido desavenças antes, mas... Eu simplesmente..."

Naruto parou de falar. Procurou auxílio ao olhar Kakashi-sensei, que apenas meneou a cabeça. Então simplesmente começou a andar resolutamente em direção ao shinobi de olhos brancos.

"Não se aproxime, Naruto. Ele pode estar fora de si."

"NÃO ME DIGA O QUE FAZER, KAKASHI-SENSEI!" O loiro explodiu, enfurecido. "Eu vi Hinata morta com meus próprios olhos! O que eu vi foi crueldade! Uma crueldade que nunca tinha visto na vida!" Apontou para o Hyuuga, que observava tudo com uma expressão ausente, ainda no mesmo lugar. "Neji nunca... Ele nunca faria nada como aquilo!! Porque ele tem os olhos mais puros que eu já vi!"

Neji olhou para Naruto novamente, murmurando algo desconexo, e seu joelho direito vacilou, fazendo-o cair com as mãos esfoladas no chão de terracota do telhado. Ele olhou para elas, imprudentemente baixando a guarda. Sakura, que até então só assistira a tudo, se adiantou e girou em volta dele, colocando sua kunai no pescoço do garoto por trás. Mirava a artéria carótida.

"Bom trabalho, Sakura."

"Sakura-chan!" O loiro protestou, olhando para o ninja imóvel na mercê de sua colega de time. "Solt-...!"

"Naruto... Deixe." O Sensei o interrompeu em um tom de censura.

"Mas..."

"Já chega."

Uma nuvem de poeira acalmou os ânimos do grupo no telhado, - finalmente chegava o time da ANBU que tinha sido despistado durante perseguição, um deles com uma ferida no ventre que sangrava. Kakashi se afastou e deixou o grupo se aproximar, arrastando Neji pelos braços e o prendendo com jutsus de controle. Naruto quis soltá-lo, mas Kakashi o repeliu, jogando-o pro lado.

"Eu disse 'já chega'."

"Kakashi-sensei, você mesmo disse que ele era um dos maiores gênios dessa geração!"

"Gênios também fazem coisas ruins, Naruto."

Um dos ANBU se aproximou do jounin, sinalizando para ele.

"Quais são as ordens, Senpai?"

"Reportar diretamente à Hokage-sama, Hiroto."

"Na Torre Hokage?"

Kakashi ponderou, analisando. Balançou a cabeça em negativa ao notar dali do alto do telhado um cortejo fúnebre se dirigindo pelas ruas de Konoha.

"No Hospital."

"Simplicidade, onde você foi?

Estou ficando velho e preciso de alguém para confiar.

Estou ficando cansado e preciso de algo pra recomeçar.

Porque às vezes o que eu sinto é só medo."


Uma multidão cercara os limites do território do Clã Hyuuga. A polícia se misturava ao esquadrão da ANBU, aos membros do clã e a curiosos que tentavam saber as últimas notícias, como telespectadores de uma bizarra trupe de circo.

Quando finalmente conseguiram se mobilizar o suficiente para afastar a aglomeração, uma maca trazendo o corpo de Hyuuga Hanabi foi levada em direção à saída dos portões. Tsunade a escoltava com Shizune ao seu lado, e a procissão da Souke dos Hyuuga acompanhava Hiashi mais atrás, em direção ao Hospital Geral de Konoha, onde seria efetuada a necropsia.

A maioria amaldiçoava o nome de Neji.


Quando chegaram ao hospital a Hokage ainda não havia chegado ao necrotério, o que indicava que o cortejo fúnebre ainda estava a caminho.

Durante o trajeto feito do centro de Konoha ao hospital dois dos mascarados haviam trazido Neji amarrado por suas sombras, e ele andava a passos trôpegos tentando acompanhar o ritmo da corrida sobre os telhados com o joelho direito estourado. Seus olhos brilhavam com algum tipo estranho de emoção ressurgida no meio do estupor que estivera, o caminho todo grunhindo, parte em dor e parte em fúria. Naruto ficara em volta tentando fazer os ANBUs andarem mais devagar para que o garoto de mãos cobertas de sangue não tropeçasse pela sétima vez, mas a situação não estivera muito favorável.

Agora, ali, na sala de espera do hospital, estavam os membros restantes do Time Sete e do time ANBU, observando cautelosamente o perfil do jovem Hyuuga enquanto esperavam pelo veredicto da Hokage. Os Ansatsu o tiveram soltado sobre uma cadeira em uma sala onde claramente não havia janelas ou qualquer rota de fuga, porém, mesmo assim, o espreitavam como se ele fosse capaz de desaparecer no ar, bem em frente a seus olhos.

Dez minutos se passaram. Ninguém veio. Neji se levantou, alarmando os presentes ali, inclusive Naruto e Sakura. Kakashi o seguiu com o olhar casualmente, apenas uma sobrancelha arqueada, aparentemente despreocupado.

Mesmo apesar de estar ferido e perceptivelmente exausto, Sakura podia sentir a inquietude de Neji quase entornando pelas bordas do controle. Assim, se arriscassem em acreditar em seu domínio próprio no humor em que ele estava, o Hyuuga iria acabar andando de um lado para o outro com a inquietação de um tigre enjaulado, joelho estourado ou não. Permitir que as pessoas vissem o quão descontrolado, nervoso e irritado ele estava naquele exato momento seria uma péssima ideia; ele já parecia ameaçador o suficiente com o modo como seus olhos brancos brilhavam de forma quase alienada e seu chakra se concentrava e rolava ao seu redor.

Antes daquela noite Sakura não havia notado ainda no quanto ele estava diferente da pessoa que prestara o Chuunin Shiken, daquele que lutara contra Naruto na Arena Externa. Neji já não tinha aquele olhar frio e postura inabalável, - agora, quando ele estava tenso, se movia com a fluidez e o propósito de um animal selvagem.

Quanto a seu chakra... já não havia mais muito controle na composição dele. Se ele explodisse, - mesmo que por um segundo, ou até mesmo se Neji parecesse um pouco ameaçador demais, os ANBU iriam tomar aquilo como um motivo para atacar. Ninguém precisava que todos começassem a se matar somente porque Neji parecia estar com vontade de dar uma surra inesquecível na parede mais próxima, fazendo com que os ANBU achassem que aquele era o indício de que ele estava prestes a começar a massacrar pessoas.

A kunoichi meneou a cabeça para Naruto, que entendeu o sinal e arrastou o Hyuuga para uma saleta aberta onde uma das paredes era de vidro, exatamente para que ninguém achasse que eles estavam tentando se esconder. Empurrou-o sobre uma cadeira.

Neji piscou, confuso, olhando para o garoto loiro, momentaneamente retirado de seu transe. Porém, um segundo depois ele já estava na ponta do assento, e era claro para qualquer um que não ficaria sentado por muito tempo. Assim, Naruto sentou-se ao seu lado e apoiou uma mão em seu ombro, colocando o pé esquerdo sobre o pé direito de Neji, fazendo com que ele tivesse que colocar força no joelho deslocado para tentar se soltar e levantar.

O que não durou muito.

Hiashi apareceu, sendo cercado por outros membros da Souke, com Tsunade e Shizune logo atrás.

Neji pulou de pé tão rápido que Naruto quase caiu, o som do protesto de seu joelho prontamente ignorado. Em um impulso Naruto segurou o Hyuuga pelo braço, por um segundo pensando que ele tivesse pirado de vez e que iria dar um bote no líder do clã. Kakashi ficou tenso, seus olhos se estreitando, e Sakura de repente percebeu o quanto da postura casual dele era apenas fingimento.

Tsunade tomou a dianteira, recebendo o relatório de Hiroto, o capitão do time ANBU.

"Hokage-sama, suas ordens."

Seu olhar pairou sobre Neji, que agora não fitava mais o líder do clã e sim o chão, em uma postura pouco característica de submissão.

"Hyuuga Neji," Ela disse, chamando-o a atenção. "Você não a matou, não é?"

Neji levantou a cabeça e fitou Tsunade. Seus olhos prateados estavam vazios, sem expressão, sem uma afirmação nem uma negativa. Não disse nada em resposta.

"Hokage-sama," Kakashi se adiantou a Hiroto, segurando o papel que Tenzou o havia entregue na sala de interrogatório. "Os resultados não haviam sido conclusivos?"

"Não, não foi ele. Há uma segunda vítima com o mesmo modus operandi, os mesmos padrões."

Os olhos de Neji piscaram rapidamente, com uma emoção indescritível. E logo após direcionaram-se para a maca que agora surgia sendo carregada pelo corredor.

"Hanabi-sama...?"

"Você estava sendo perseguido de perto enquanto ela foi assassinada, Neji." A Hokage disse, estranhamente redirecionando o olhar para Hiashi, que estivera parado com sua comitiva na porta de acesso à saída. Como se quisesse de alguma forma provar um ponto de vista anterior. "Você está livre."

Ao ouvir aquilo procissão de Hiashi continuou caminhando, seguindo sua rota para o corredor do hospital que dava para o necrotério. Neji deu uma meia olhada para o líder do clã, que caminhou sem encará-lo, enquanto o resto da Souke se afastava, olhando-o com desconfiança.

Ninguém naquela família jamais o absolveria tão fácil.


"O que faremos agora? Estamos sem suspeitos."

"Não podemos incriminar um garoto simplesmente porque estamos sem implicados indiciáveis, sem saída, e com dois cadáveres do maior clã de Konoha na mesa. Que bobagem!" Foi o que Jiraiya respondeu, com o sarcasmo de um adolescente, tamborilando os dedos sobre tampo da mesa de Tsunade.

O Conselho da Vila havia se formado na sala com o intuito de começar a analisar a situação enquanto a Godaime não dava seu parecer, unindo os conselheiros administrativos e os principais jounins. Mesmo sendo a líder da vila ela era uma pessoa só, e podia apenas resolver um assunto por vez. Primeiro viria a necropsia da criança, depois as consequências.

Jiraiya olhou da janela da sala Hokage para o pequeno contingente que debatia as ações a serem tomadas em uma algazarra contida. Era só ter se afastado da vila por algumas horas que tudo havia virado de cabeça para baixo com a sutileza de uma bomba atômica. Ao que parecia a Vila da Folha havia se tornado um imenso imã de problemas...

Aquilo com certeza atrasaria seus planos de deixar a cidade com Naruto.

"Jiraiya, devemos enviar uma mensagem para Maito Gai e Yuuhi Kurenai." Disse Homura, um dos conselheiros administrativos da vila. "Creio que mesmo participando de missões na Vila da Grama eles necessitam saber em que pé andam as investigações."

O Sannin mordeu o lábio com força, apoiando-se no batente da janela.

"Nosso erro foi subestimar a paz súbita que abateu Konoha. Enviamos uma grande parte de nossos ninjas para ajudar outras vilas e acabamos prejudicados por isso. Acredito que o melhor a fazer no momento é guardar a segurança dos principais membros do clã Hyuuga..." Ele continuou a tamborilar impacientemente, franzindo as sobrancelhas. "É possível que nosso amigo tivesse por alvo apenas as herdeiras legítimas, mas talvez ainda tenhamos pessoas sob sua mira."

Um jounin ao fundo pigarreou, tentando encontrar um modo de expor o assunto. O Gama-sennin o olhou, ainda com a sobrancelha erguida.

"O que vamos fazer quanto ao menino-gênio?"

Ele mordeu o lábio mais uma vez, correndo a mão pelo cabelo.

"Tsunade o liberou, mas ele ainda possui o sangue compatível. Não podemos perdê-lo de vista."

Jiraiya desencostou, virando de costas e olhando pela janela mais uma vez.

"Não podemos permitir que sujem de sangue inocente a nossa vila."


Hiashi acompanhava a necropsia de Hanabi em profundo silêncio. Ao lado do corpo dela repousava, em outra mesa, o cadáver costurado de Hinata. As duas herdeiras do clã mortas. Em semelhantes e terríveis circunstâncias.

"Você já deveria saber há essa altura que não gosto de começar algo sem saber como será o fim."

Cerrou os olhos, levando uma mão trêmula à fronte. Aquilo não podia estar acontecendo. Era um pesadelo. Um pesadelo. Só podia ser um pesadelo.

Ao ver sua expressão Tsunade repousou o bisturi que segurava, gesticulando para que Shizune retomasse a tarefa em seu lugar. Aproximou-se do líder do clã transtornado, retirando as luvas.

"Hiashi, realmente sinto muito por Hinata e Hanabi, mas estamos ficando sem opções. O que acha de minha teoria agora?"

Ele a olhou com uma mistura de incredulidade, culpa e dor, negando veementemente com a cabeça.

"Não vou culpar fantasmas pelo assassinato de minhas filhas." Não seria mais inteligente assumir de vez? Assumir que era verdade sim, e que tudo estava vindo à tona com a força de uma avalanche? Negou com a cabeça mais uma vez, tinha que ser um pesadelo. "Não vou. Não posso."

"Mas há de se convi-...-"

O olhar da Hokage derreteu em uma expressão de compaixão, e ela cortou sua frase ao meio. A estrutura sólida do estóico chefe da grande e tradicional família Hyuuga parecia prestes a rachar ali, bem em frente aos seus olhos.

"Tem algo que eu possa fazer por você?"

Me acorde...


"Como ele está, Sakura-chan?!"

A genin de cabelos cor-de-rosa tinha acabado de fechar a porta atrás de si quando Naruto veio correndo para cima dela, explodindo em perguntas.

Após a sentença da Hokage no hospital, havia sido decidido que Neji estava livre para finalmente ter seus ferimentos e lesões tratados. Porém, mais que imediatamente o Hyuuga se recusara de forma categórica a permanecer no pronto-socorro um segundo a mais, murmurando algo sobre como um hospital jamais iria fazê-lo melhorar.

Ele começara a andar resolutamente em direção à saída, vacilante sobre os próprios pés e prestes a desabar a qualquer momento quando Naruto o segurara pelo braço, apoiando-o precariamente e implorando com o olhar que Sakura fizesse algo.

E assim eles haviam acabado no apartamento do garoto loiro, com ela tendo que sumariamente exercer o que sabia sobre medicina ninja.

Suspirou, cansada.

"Não houve danos muito sérios. O pior, na verdade, foi a contusão no joelho. A patela foi fraturada e saiu do lugar, o que causou uma lesão no menisco medial e rompeu o ligamento cruzado anterior. Houve também uma corte mediano no tendão calcâneo, mas..."

"Sakura-chan..."

"O que é, Naruto?"

Ele a devolveu um olhar besta, coçando a cabeça.

"Não estou entendendo..."

Sakura deu um suspiro condescendente. Andou pela pequena cozinha da casa de Naruto e se sentou na cadeira, apoiando o cotovelo na mesa.

"Naruto."

"Sim?"

"Como pôde ter tanta certeza que não foi ele?" Redirecionou o olhar incisivo para o colega de time. "Por que quis ajudá-lo? Mesmo depois de ver o que foi feito da Hinata?"

Naruto ponderou, pensando em uma resposta, repousando o hitaiate de Hinata sobre a mesa. A imediata seria inapropriada na atual situação, então ele preferiu pensar em uma mais simples.

"Ele foi o primeiro a dizer que eu não era nenhum fracassado. Eu nunca tinha conhecido alguém capaz de mudar totalmente sua forma de pensar. A primeira pessoa que eu vi mudar foi o Neji." Enviou-a um sorriso bobo, incerto, difícil, um tanto inseguro. "Ele não é nenhum fracassado... E não é nenhum assassino também."


Olhos prateados olharam ameaçadoramente através da janela. Os cabelos compridos e castanhos lhe cobriam a face, e ele saltou para dentro sorrateiramente, se aproximando sem ser notado.

Sorrateiramente entrando pela janela da casa de Naruto. Sorrateiramente entrando pelo quarto onde estava deitado Hyuuga Neji.

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Capítulo 03 – Da Evasão /終わ