Excalïbur
Shaka Dirk


"Bang bang, he shot me down
Bang bang, I hit the ground
Bang bang, that awful sound
Bang bang, my baby shot me down."


Treinava incansavelmente desde o ocorrido. Não pensava em nada mais, só treinava. E quando seu corpo começava a demonstrar sinais de cansaço ele apenas aumentava o ritmo, e então a dor vinha, mas ele acreditava que merecia toda aquela dor.

Suas roupas estavam rasgadas, seu corpo sujo, banhado pelo suor, sangue e lágrimas. Não parara de chorar, não dormira, não havia se alimentado. O sol estava se pondo pela terceira vez desde que tudo aconteceu e mesmo assim ele se mantinha na arena. Nem mesmo a Deusa conseguira fazê-lo parar. Acreditava que somente assim poderia se redimir de seus pecados. Somente se treinasse até a exaustão, ou quem sabe a morte o livrasse de todos os tormentos antes.

Os últimos raios de sol lutavam contra a inevitável noite quando ele sentiu a energia de outro cavaleiro entrando na arena. Não precisava virar para saber que Kamus estava observando-o com seu típico olhar indiferente, quase o estudando.

"O que quer aqui?" -disse rapidamente, sem sequer parar de treinar. -"Não percebe que eu não quero companhia?"

"Saga, Shaka, Mu e Dohko... Os quatro estão cuidando dele. São os cosmos mais poderosos deste Santuário, logo ele estará curado. Não há por que continuar com isso Shura." - seu tom era baixo, quase melancólico. Importava-se com o companheiro, mas não sabia o que poderia fazer para ajudá-lo. -"Descanse. Logo tudo estará bem..."

"Bem, Kamus?" -pela primeira vez em três dias ele parara de destruir as paredes da arena com seus poderosos golpes, apenas para berrar desesperadamente com o aquariano. -"Você realmente acha que alguma coisa vai ficar bem? Eu quase o matei! E isso porque eu simplesmente não pude confiar nele. Confiar totalmente no que ele me dizia..."- Shura levou as mãos ao rosto, escondendo nelas a vergonha, o tormento e as lágrimas. - "Eu quase matei a pessoa que eu amo..."

Kamus ficou petrificado, tentou se aproximar do amigo, mas foi repelido pelo mesmo. Sempre soubera do orgulho do espanhol, mas estava decidido a ajudá-lo, querendo ele ou não.

"Eu entendo o que sente, mas não vai adiantar absolutamente nada ficar destruindo uma parte da arena enquanto a outra se reconstrói sozinha ao longo do dia! Você só está desperdiçando o seu potencial e o cosmo da Deusa, que é o que mantém esse lugar em constante reconstrução. Por Zeus, Shura... Você deveria estar ao lado dele..."

"E você realmente acha que Dohko iria deixar eu me aproximar dele? Shiryu é seu pupilo, ele nunca me perdoará por tê-lo ferido daquela maneira... Não me surpreenderia se ele viesse vingá-lo pessoalmente." -sua voz assumia a face da amargura, entretanto, percebia-se na verdade que ele apenas dizia aquilo que mais intimamente estava desejando que acontecesse. -"Eu mereço ser castigado." -levantou-se olhando para o céu e então gritou:- "Zeus? Por que não me fulmina com um raio?"

"Por que ele não é tão infantil quanto você imagina." -a voz viera de um outro cavaleiro que acabara de entrar na arena e fitava atenta e cruelmente ao capricorniano. - "Kamus, Dohko e os outros acabaram. Tudo o que poderia ser feito foi feito. Athena decidiu que agora médicos podem ajudar Shiryu sem nenhum problema. Ela quer que você, Miro e Kanon levem-no, o internem e fiquem de prontidão." - disse de forma rápida, fazendo com que o francês percebesse que não tinha alternativas e que ele teria que ir de imediato.

"Sim." -concordou Kamus, sem sequer hesitar. -"Shura... Pense em tudo que eu lhe disse." -então ele se retirou em direção ao templo de Athena.

"Quanto a você, deveria parar com toda essa autopunição. Creio que em breve receberá o castigo adequado." -a voz do Grande Mestre era fria. Decepcionada, quase triste. -"Não rogue pela morte. Nada será tão simples de agora em diante. Para nenhum dos dois."

"Como ele está Shion?" -seu semblante era a perfeita máscara do desespero, não poderia agüentar mais tempo sem saber como ele estava... - "Por favor, me diga! Eu sei que você sabe... Dohko ou Mu devem..." -não pode terminar a frase, pois o homem de cabelos amarelados havia começado a falar, atraindo toda a sua atenção.

"Inconsciente." -A palavra saiu só, acompanhada de um longo silêncio. E então os olhos dos dois cavaleiros se encontraram. -"Os ferimentos foram quase fatais... Por piedade dos deuses Dohko encontrou-o a tempo... se houvesse demorado um pouco mais a socorrê-lo... Provavelmente ele estaria morto agora."

Novamente se fez um longo silêncio. Shura deixou-se desabar. Chorava num misto de culpa e alívio. Revolvia a terra com os dedos enquanto soluçava. Era observado por um Shion que a cada instante entendia menos o que acontecera na casa de Capricórnio.

"Pelos deuses, homem, o que diabos aconteceu há três dias?" - Finalmente fizera a pergunta que vinha passando na cabeça de todos no santuário, desde que encontraram Shiryu quase morto, mas que ninguém realmente proferira. -"O que aconteceu naquele dia?"


"Eu te amo..."

Os olhos fechados com força, os cabelos espalhados pelo chão, aquela sufocante dor onde acabara de ser acertado. E mesmo assim não conseguia tirar aquelas palavras da mente, não conseguia esquecer a voz rouca, o sotaque...

Outros dois golpes lhe acertaram as costas e então seu corpo foi de encontro ao chão. Virou-se e abriu seus singulares olhos sem vida. Estava cansado, o suor escorria por cada canto de seu corpo. Havia resistido o máximo possível.

"Hoje você realmente não conseguiu se concentrar nem por um minuto no treinamento, não é Shiryu?" - A voz do outro homem era forte, determinada. Sorriu, nunca vira seu pupilo tão avoado anteriormente. - "O que anda acontecendo entre você e o espanhol?"

"Mestre?" -O garoto enrubesceu-se quase imediatamente, sua voz tremia, seus olhos sem brilho tinham se arregalado. -"Ele... eu... nós..." -Parou. Tentou respirar o mais pausadamente possível. -"Ele disse que me ama... eu não sei o que pensar, não consigo pensar em nada além disso, mas também não soube o que dizer à ele."

"A resposta está dentro de você, até mais clara do que parece." -riu-se Dohko sentando-se ao lado de seu aluno -"Eu te conheço há anos e nunca o vi desse jeito... Ele realmente é especial, não é?"

"Mestre, o senhor alguma vez já se apaixonou?..."


Fechou os olhos, sentiu novamente o cheiro do pomar. Quase conseguia ver a cor das flores e das frutas, quase sentia as árvores. Ele estava inerte em seus braços, talvez estivesse dormindo... talvez.

Mas o violento cheiro de sangue se fez sentir. Abriu então os olhos e incrédulo, viu que ao redor só havia sangue, sentia-o quente e viscoso entre os dedos e por todo o corpo. E ele estava inerte em seus braços, mórbido, ferido... quase morto.

Ouviu um trovão que repercutiu pelas doze casas. Soltou o corpo desesperadamente, as primeiras lágrimas rolaram por seu rosto. Sentiu medo por ele e raiva de si mesmo. Acreditou que nada conseguiria expiar seu mais novo pecado. Não conseguia olhá-lo. Correu em direção à forte chuva, não para fugir, e sim para a única autopunição que concebia.

Sabia que os outros já começavam a perceber que algo havia acontecido e esperava que viessem caçá-lo, que viessem punir com as próprias mãos. E então parou de correr, estava nas arenas, onde esperaria por sua punição. Olhou ao redor e só via a água batendo com violência nas paredes do lugar, decidiu por fim seguir o exemplo e deu início à auto-tortura.


As lágrimas escorriam grossas por seu rosto quando acordou, não conseguia se controlar. Kanon o havia abraçado, mas mesmo assim não se sentia seguro. Só repetia sempre a mesma frase... - "Eu não entendo..."

Miro e Kamus assistiam a tudo extremamente abalados. O francês sabia do temperamento explosivo de Shura, mas também sabia que ele amava o garoto. Já o escorpiniano havia se aproximado muito dos cavaleiros de bronze nos últimos tempos, não conseguia entender o que poderia ter causado aquilo. Kanon só queria acalmar o dragão.

"Shiryu, você tem que se acalmar. Ficar assim não vai adiantar nada, não vai mudar o que aconteceu." -Disse o cavaleiro de Gêmeos ainda abraçado a ele. - "Tente se acalmar e aí sim tentaremos entender..."

O chinês balançou a cabeça com força e afastou Kanon de si. Suas mãos se emaranharam em seu longuíssimo cabelo negro. Seus lábios tremeram, seu corpo se retraiu. O silêncio imperava na sala, e então a voz saiu engasgada, lânguida.

"Ele não tinha por que... eu... eu sempre, sempre fui dele..."

O silêncio novamente se instaurou no quarto, cada um ali imerso em suas próprias observações acerca do que havia acontecido.


"Onde está me levando, Shura?" -perguntou o garoto, meio que sorrindo para o homem que o puxava ansioso. -"Se você me disser eu talvez conheça o caminho... Não ficarei tão hesitante em andar..."

"Não se preocupe Shiryu, eu não vou te deixar cair."- Sorriu o outro cavaleiro- "E eu garanto que você nunca foi até lá... Ninguém, se não eu, vai lá há anos!"

"Como você pode ter tanta..."- a objeção do chinês se perdeu. Estava atônito. Sabia que era um campo aberto, que havia centenas de árvores. Mas por todos os lados só se sentia o cosmo de Shura. -"Como?"

"Este pomar fica muito próximo de Star Hill, então ninguém se atreve a passar por aqui... logo eu concluí que era um bom lugar para se ficar sozinho." - um novo sorriso tomou o rosto de Shura - "Quis dividir esse meu lugar com você, fazê-lo nosso."

Shiryu abraçou o Capricórnio. Era impressionante como se sentia cada vez mais e mais atraído e fascinado por ele... E quando achava que conhecia tudo a seu respeito, o espanhol revelava outro lado surpreendente.

Beijaram-se, deixaram-se cair na grama alta. Pássaros e insetos voaram no instante em que eles agitaram a terra numa verdadeira explosão de sons e de vida. As flores agitadas liberavam seu perfume com o pólen, e por alguns instantes toda aquela região transpirava a vida.

E aquele era agora um lugar dos dois.


"Como você pôde?" - o grito ecoou como um trovão por toda a décima casa zodiacal logo que o cavaleiro de Dragão adentrou ao recinto, molhado pela chuva que assolava o santuário - "Depois de todas as provas do meu amor por você... Depois de eu te mostrar o que eu tinha de mais meu, mais íntimo... Depois de Excalibur..."

"Shura... Você não entendeu..." - tentou em vão articular o garoto. Um relâmpago varreu os céus, iluminando a décima morada por alguns segundos, segundos onde só se ouvia a chuva caindo sobre a casa. - "Tudo isso é apenas um grande erro..."

"É, você tem razão... Isso tudo não passou de um erro. Confiar em você foi um erro!" - E esse foi apenas o primeiro tapa, mesmo não sendo físico acabou machucando mais do que qualquer ferimento. Lá fora, um trovão ressoou, enquanto dentro da casa, uma lágrima percorreu a face do Dragão. - "Nunca deveria ter entregado tudo o que eu tinha a um garoto... A alguém que sequer tem a capacidade de assumir sua traição!"

E então o rosto do chinês foi pego por um tapa certeiro. Um golpe que o atirou contra a parede leste da morada. Mal havia se levantado quando sentiu um outro ataque, que desta vez o acertou na região do estômago tirando-lhe o fôlego e o equilíbrio. Quando seus joelhos alcançaram o chão, vários outros golpes rápidos e potentes acertaram-lhe as costas. Sentiu sua pele ser cortada... Sentiu sua carne ser dilacerada... Sentiu as lágrimas mortais caírem-lhe pelo rosto. Sabia que não merecia aquilo, mas também sabia que não conseguiria convencê-lo disso. E, mais do que tudo, sabia que ali tudo acabaria. E o céu noturno parecia chorar com mais aflição enquanto tudo era perdido.


Acabara de retornar ao Santuário. Todos vinham lhe fazer enfadonhas visitas. Todos, menos ele. Mal podia andar que já se cansava. Sentia-se preso naquele quarto, mas não podia fazer nada para mudar a situação. Seus amigos tentavam lhe animar. Os Cavaleiros de Ouro lhe davam notícias sobre tudo e todos, exceto dele. A Deusa tentava lhe distrair com algumas canções e histórias, sem sucesso.

Só se sentia "bem" quando estava sozinho. E mesmo assim não parava de pensar nele. Às vezes queria dormir para sempre, assim não teria que pensar no que havia acontecido, mas quando os sonhos vinham só via neles aquela mesma cena acompanhada por um coro celestial de "eu te amo", um grupo de homens desesperados gritando "não, isso é um erro", e demônios rindo e berrando a plenos pulmões "você merece isso tudo, e mais...". Quando acordava assustado e suado, acreditava que era melhor não voltar a dormir nunca.

Ficava horas a fio apenas esquadrinhando o santuário com seu cosmo à procura dele. Às vezes sentia frio, mas não fazia nada para amenizar a sensação, e quando sentia fome não tinha vontade de comer. Só se perguntava por que não o encontrava ou por que ele não viera visitá-lo.

Como sempre, tudo o que conseguia era descobrir que mais uma vez alguém estava vindo lhe visitar.

"Sabe," - Mu começou a dizer logo que atravessou a porta do quarto - "acho que deveria poupar seu cosmo ou empregá-lo para curar seu corpo mais rapidamente... Você não vai conseguir encontrar Shura assim."

Shiryu estava atônito. Não só pelo fato de o Cavaleiro de Áries saber o que ele estava procurando, mas por ele estar falando no espanhol, visto que até agora todos haviam muito habilmente fugido do assunto.

"E por que não vou encontrá-lo assim?" - perguntou curioso, se aproveitando da abertura que o amigo havia dado.

"Shura está preso. Como punição por ter atacado um outro Cavaleiro de Athena a Deusa o acorrentou na mais alta e antiga árvore do Santuário. Ninguém sabe onde ela fica só sabemos que a Deusa usou um de seus selos nas correntes para assim impedir que ele fuja. O selo esconde o cosmo dele... Por isso você não o encontrará."

O chinês baixou o rosto, seus cabelos esconderam de Mu o sorriso discreto que passou por seus lábios, afinal, mesmo sem saber ele o havia dito onde encontrar Shura.


Apenas caminhava. Não ousou olhar para trás e ver a decepção no olhar da Deusa. Ele simplesmente se dignava a andar para onde a voz dela o mandava ir. E ele começava a entender pra onde se dirigia. Conhecia aquele cheiro, conhecia aquelas flores, conhecia o grande pomar.

Ao longe uma grande árvore chamava a atenção, não apenas pelo seu glorioso tamanho, mas também pela enorme distância de qualquer outra árvore dela. - "É" -riu-se Shura em pensamento - "Aqui é realmente um bom lugar pra se prender alguém".

Mal suas costas haviam tocado a árvore e as grandes correntes douradas já o cercavam. Não foi preciso nem dez segundos para que ele estivesse totalmente imobilizado. E, sem sequer olhá-lo nos olhos, a Deusa selou as correntes e partiu. - "É"- conclui ele -"Eu realmente mereço isso... não... eu merecia algo pior."


"Ele está demorando" -pensava enquanto descia pelo caminho secreto do santuário. Sentiu o forte vento correr por seu corpo, a noite estava fria, o céu ameaçava desabar sobre a Terra.- "E com esse tempo... não ia ser bom tomar chuva tão cansado!" -Sorriu ao se perceber tão preocupado. Logo alcançaria a Casa de Libra, logo iria vê-lo.

Desceu os últimos degraus com uma estranha pressa. Olhou a entrada da morada e não pode evitar um sorriso. Um relâmpago cortou o céu atraindo sua atenção por pouco tempo. Ignorou então as primeiras gotas da chuva e seguiu em direção ao centro da casa.

Um trovão ecoou por toda a casa e acompanhando-o, a chuva caiu feroz criando uma total confusão de sons quase ensurdecedores. Seus olhos brilharam logo que viu o garoto que o havia enfeitiçado encostado displicente em uma coluna. Pensou em correr ao seu encontro, mas suas pernas estancaram logo após o pensamento, afinal outra pessoa havia feito isso antes dele.

Viu Dohko erguê-lo em seus braços, via um sentimento imenso no olhar do Libriano. Cerrou os dentes com força descomunal, sentiu o ódio crescer dentro de si, seu rosto ardia. O homem de cabelos ruivos começou a dirigir-se ao quarto da morada com o pupilo nos braços. Shura explodiu. Não podia acreditar no que via. Mas estava vendo, e isso ninguém jamais mudaria.

Saiu correndo da morada tentando sem sucesso conter o ódio crescente dentro de si. Seu cosmo explodia em ira. Desejava vingança.

No centro da sétima casa zodiacal, Dohko sentindo o cosmo do Espanhol crescer enquanto este se afastava e lamentou pela confusão.


"Eles estão aqui. Vieram me visitar. Meus amigos, que sempre estiveram ao meu lado." - Pensou triste. Sabia que eles se preocuparam com seu estado debilitado, mas não conseguia ficar exatamente feliz com a presença deles. Sentia-se ligeiramente ingrato e egoísta, trazendo estampado no rosto feições de sofrimento.

Uma mão suave pousou delicadamente em seu ombro - "Quer que eu os convença a ir agora?" -as palavras eram calmamente ditas próximo ao seu ouvido. - "Talvez você queira ficar sozinho. O que me diz, amigo?"- A voz era calma e doce, mas sentia-se um tom de preocupação por detrás dela.

"Me desculpe por preocupá-los tanto, Shun." - disse, depois de um tempo, pondo a mão sobre a do outro cavaleiro. - "Vocês têm se preocupado muito comigo nestes últimos dias, e... E eu... Tudo o que tenho feito é me lamuriar e acreditar que apenas eu carrego problemas." -Um esboço de sorriso passou por seus lábios. Seus singulares olhos desfocados, presos em uma direção qualquer, ficaram marejados -"Tenho pensado muito. Tenho tido muita... auto-piedade. Isso não me ajuda. E esse lugar me faz mal."

O garoto de cabelos verdes não soube o que dizer. Após alguns instantes fitou seus companheiros que se encontravam em uma ferrenha discussão sobre como a deusa deveria punir os cavaleiros que fizessem algo hediondo. Sabia que Shiryu os ouvia, embora não soubesse se aquilo estava ajudando ou piorando o ânimo de seu amigo. Fitou seus companheiros mais um pouco e, por fim, repetiu a pergunta.

"Não, Shun... Apesar de tudo, eu os entendo. Eles não aceitam o que aconteceu, muito mais do que eu." - Desejava gritar, ansiava para que parassem de falar. Queria estar só. Imaginou que o amigo estava fitando-o, esperando por algo que realmente o convencesse a ficar ali. - "E a presença de vocês me conforta." -Mentiu apenas para poupar o amigo de maiores preocupações.

Sentiu a mão apertar um pouco mais seu ombro, um aperto confortável. Percebeu o colchão da horrível cama de hospital afundar um pouco quando Shun sentou-se. Ensaiou mais um sorriso triste. Logo estaria fora dali, de volta ao seu lugar, de volta ao cosmo da deusa. E então as coisas melhorariam.

"Pra ser bem sincero," - a voz saiu baixa, como se fosse apenas um pensamento alto demais escapando de sua cabeça, mas mesmo assim chamou a atenção de Andrômeda. - "sinto muito a falta dele. Sinto um vazio no peito que absolutamente nada é capaz de preencher... é... sinto mesmo a falta..."

Antes mesmo que pudesse terminar de dizer o que pensava, o menino de cabelos esverdeados já o havia envolvido em um terno abraço. Um abraço que por mais distante que fosse dos braços que ele queria que o acolhessem, consolou sua dor, e sem mais uma palavra as lágrimas rolaram pelas faces de ambos.


Chovia muito naquela noite. Tão grande era o poder da água que despencava das alturas celestes, que mesmo abaixo da milenar árvore a chuva o castigava. Seu corpo tremia o máximo que as poderosas correntes permitiam, sua cabeça estava baixa para tentar encontrar alguma proteção contra a tempestade. Estava com frio e sequer podia usar seu poderoso cosmo para tentar se aquecer.

Levantou a cabeça de repente, por um segundo, um único segundo, havia sentido um calor quase violento. Seus olhos vasculharam a noite inundada à procura de quem havia liberado aquele brilho cósmico. Fixou o olhar nas sombras de uma árvore, onde precariamente conseguia ver algo reluzir fracamente quando as gotas da forte tempestade se chocavam contra o metal.

A figura saiu das trevas deixando-se ver. Havia algo em seu olhar, algo que Shura conhecia bem.

Desprezo.

O Capricorniano não conseguia entender o que o outro fazia ali. Justamente o mais ausente dentre os cinco Cavaleiros de Bronze mais ligados à Athena, justamente o que "nunca se importava" com a situação dos amigos. O olhar fixo de Ikki parecia prestes a fulminar o espanhol.

E então, Fênix ergueu o braço, apontando um ponto qualquer. Shura hesitou, mas por fim olhou na direção que o outro cavaleiro apontava. A uma primeira olhada não viu absolutamente nada, mas quando tornou a olhar para onde Ikki estava ele já havia partido, sem dizer nada, apenas indicando um ponto em meio à noite chuvosa.

O espanhol voltou seu olhar para o local indicado, onde por fim encontrou um par de olhos sem brilho algum presos em sua direção. O ar lhe faltou, seu coração atrasou uma batida, um relâmpago cortou os céus.

Ele estava ali.


Dohko estava se espreguiçando enquanto o pupilo soltava um pequeno bocejo. Haviam passado a tarde toda na conversa mais estranha que já tiveram. Falavam sobre relacionamentos, sobre os sentimentos, sobre a entrega e a aceitação. O Cavaleiro de Ouro sorriu ao perceber quanto tempo passara nesse assunto.

"Você está ficando muito 'espertinho', Shiryu." - Em seu rosto um sorriso maroto indicava ao garoto que receberia uma repreenda bem humorada de seu mestre - "Me enrolou a tarde toda com essa conversa... Mas, não pense que se livrou do treino, hoje você só sai daqui depois de ter conseguido passar pela minha defesa." - Dohko riu-se divertido, sabia que era improvável que o aluno conseguisse isso, mas queria fazê-lo entender que ainda treinariam bastante antes de dispensá-lo.

Em resposta à provocação do mestre o garoto simplesmente sorriu e assumiu sua postura de ataque. Seu mestre podia conhecer muito bem todos os seus golpes, mas Shiryu quase sempre encontrava uma saída para situações complicadas.

Conhecia bem a casa de Libra, sabia como usá-la a seu favor para derrubar o mestre, ou ao menos acreditava nisso. Saiu correndo na direção do Cavaleiro de Ouro, sua energia cósmica aumentando enquanto o oponente se preparava para defender o golpe que nunca chegou, pois antes de lançar o golpe o garoto mudou seu alvo para a coluna mais próxima que foi pulverizada pelo ataque.

A poeira subiu densa e seu cosmo sumiu completamente. Agora estavam em condições semelhantes, um não via o outro.

"Esconde-esconde, Shiryu? Não sabia que você gostava de brincar assim." -Dohko ria em meio à poeira, mas apesar da aparente descontração, seus sentidos estavam mais aguçados do que nunca. O silêncio imperou na morada. Não se era capaz de ouvir nada, nem mesmo um passo.

Foi então que o segundo golpe do garoto foi desferido. Em total silêncio ele havia se aproximado o máximo possível para não chamar a atenção do mestre e conseguir surpreendê-lo, mas mesmo todos esses esforços não foram suficientes.

Ao perceber o ataque, Dohko liberou um poderoso contragolpe que além de dissipar toda a poeira lançou Shiryu violentamente de costas contra uma pilastra onde a cabeça do garoto se chocou. Ele caiu inconsciente, mas curiosamente sentado, como se apenas tivesse se recostado no pilar e ali adormecido.

Dohko chamou-o rindo, achava que o pupilo o estava tentando enganar novamente, mas passados alguns segundos sem nenhuma resposta ele percebeu a gravidade da colisão. O terror passou pelo seu rosto exatamente no momento em que do lado de fora da casa uma chuva forte começou a castigar o Santuário.

Sem pensar em mais nada, o Cavaleiro de Ouro correu até onde Shiryu caíra. Em seu rosto sério um olhar confuso podia ser visto. Confuso, pois Dohko amava o pupilo, mas não era o sentimento que aflige o coração de modo a não conseguir viver longe da pessoa amada. Era um amor paterno, afinal ele mais do que qualquer outra pessoa educara, e criara o Cavaleiro de Bronze. Quem o visse naquele momento jamais conseguiria diferenciar aquele olhar.

O guardião da Casa de Libra pegou o garoto nos braços e o levou ao quarto de sua morada, onde ele poderia cuidar dele até que ele acordasse. Mas, mesmo antes de chegar ao quarto, Dohko sentiu sua espinha esfriar mortalmente. Sentiu uma fúria imensa do lado de fora de sua morada. Então ele lamentou. Alguém afinal tinha o visto e não havia sido capaz de entendê-lo.


O rapaz de olhos sem brilhos se aproximou lentamente de onde o homem mais velho estava preso. Ignorava totalmente a chuva forte que ensopava seus longos cabelos negros, apenas se importava em chegar até a grande árvore.

Parou poucos passos à frente do espanhol, que o olhava com uma expressão de surpresa, e ao mesmo tempo um olhar triste. A chuva era ensurdecedora, ecoando por todo o pomar e pelas cavernas ao redor. Aproximou-se mais, até encostar a cabeça no tronco ao lado de onde a cabeça do homem de cabelos curtos estava encostada.

"Shiryu..." - o Cavaleiro de Ouro deixou o nome do rapaz escapar por sua boca, mas silenciou logo em seguida, pois as mãos do Cavaleiro de Bronze suavemente tocaram seu rosto.

"Shh..." - Sussurrou o garoto de cabelos compridos ao ouvido do homem preso. - "Não diga nada, Shura. Eu só vim aqui por três motivos, e quero que você os entenda." - Falava com uma tranqüilidade assustadora, parecia estar totalmente decidido sobre o que diria, e talvez realmente estivesse. - "o Primeiro motivo é mostrar a você que eu estou bem, que você não me matou, e assim tirar esse fardo das suas costas."

"O Segundo motivo" - disse mais próximo ao ouvido do Espanhol - "É dizer que apesar de tudo, eu te amo. Dizer que eu finalmente entendera o que eu sinto na tarde do dia em que você me surrou, enquanto conversava com meu mestre. Dizer que ele é que me fez entender o quanto eu te amo..."

Ao ouvir essas palavras, lágrimas de culpa saltaram dos olhos de Shura, que por um ínfimo instante pode acreditar que tudo estaria bem de novo. Mas esse instante acabou quando a suave voz do garoto fez-se ouvir de novo.

"O terceiro motivo, Shura" - disse mais sério, afastando seu rosto do espanhol - "Foi para poder me despedir de você." - Sua voz saíra fatal. A cabeça de Shura se abaixou levemente escondendo seus olhos banhados por lágrimas, ele não iria contestar, sabia que o garoto tinha razão.

Mas levantou seu olhar para vê-lo ir pela última vez, e quando Shiryu já estava na linha das outras árvores, prestes a sumir por entre elas, ele se virou uma última vez e falou alto para que o Cavaleiro de Ouro pudesse ouvir.

"E foi justamente por não conseguir confiar na pessoa que mais se dedicou a você, Shura, que você a perdeu. Foi no momento em que você achou que eu não poderia ser fiel que você me perdeu."

E ao dizer isso, o Cavaleiro de Bronze desapareceu por entre a chuva deixando o espanhol acorrentado e com suas últimas palavras ecoando em sua mente.


Outono de 2005

Dedico essa fic ao Gue, que aaaaaaaaama o Shura e ao Xellos, por ser a pessoa maravilhosa que é...

Agradecimentos:

Ao Shiryu, que revisou algumas partes da fic e me ajudou em algumas cenas, e que de certo modo é o motivo por eu escrever com o Shura e o Shiryu.
A Dana, que vai ler e fazer uma crítica pra mim, mesmo detestando o Shura.
À Mudoh, que vai gentilmente revisar a fic pra mim...
À Aquarius, que também revisou a fic pra mim.
À Mizuki, que sempre me incentivou a continuar escrevendo.
Ao Nexus, que me ajudou com uma cena.
À Lilly, que sempre me dá ótimas idéias.
E ao Xellos, que mesmo sem saber me inspirou algumas das cenas.

Obrigado a todos vocês.

Cavaleiros do Zodíaco pertencem ao titio Masami Kurumada e a Toei Animation, maaaaaaaaas, essa fic ME pertence... Se alguém muito gentilmente quiser divulgá-la, por favor, peçam que eu sentirei um prazer enorme em colaborar...