Moira

Segunda Parte - Prólogo

A pequena formiga desviou da faca sobre a mesa, pareceu hesitar em que direção tomar, então desapareceu por alguns segundos sob a sombra do prato, e reapareceu novamente deslizando rápido para o seu interior em direção aos respingos da calda de chocolate sobre o waffle de Giny. A garota a observou com complacência, escutando ao longe as conversas paralelas que a envolviam numa redoma entediante de ânimo e frivolidade.

Talvez as únicas pessoas que não estivessem falando fossem ela e Rony, mas por motivos muito distintos. Rony estava particularmente aborrecido por não ter conseguido comprar os ingressos para o jogo dos Chudley Cannons que seria naquela quarta-feira, porque os gêmeos se recusaram a lhe emprestar o dinheiro.

"Essa sua cara não passa confiança", dissera Fred.

"Mas a cara dele parece muito com a nossa", observara George, com uma sobrancelha erguida, olhando Rony.

Fred lançou para seu gêmeo um olhar óbvio e a conversa terminou ali. Estando o humor de Rony sempre em total harmonia com seus rancores, ele não falava nada a três dias e naquele momento estava partindo em quadradinhos milimetricamente homicidas a carinha feliz de uma de suas panquecas estilizadas.

E Giny não falava porque nos últimos dez dias sua mente lembrava o vazio ermo de um baú saqueado. Nenhuma lembrança vinha, por mais que ela forçasse, por mais que lhe dissessem o quanto o Natal fora bom n'A Toca, que houvera fogos de artifício e sua mãe encomendara bolinhos de chocolate indianos, nenhuma imagem vinha em sua cabeça. Nada de fogos nem bolinhos, apenas um negrume incômodo que mais parecia uma cegueira mental. Por isso, naquela manhã especialmente animada no Salão Principal, onde todos reencontravam os amigos e lhes contavam sobre as férias de Natal, Giny pensava, ao invés de falar, porque não tinha nada para falar.

Estava considerando a hipótese de contar a Rony que perdera a memória, mas sabia que naquele momento a última pessoa que lhe daria alguma atenção era ele. Hermione faria um alarde sem tamanho, e Harry talvez se interessasse, mas contar de repente a ele que um dia acordara sem memória a fazia sentir repulsas. Ainda lhe embrulhava o estômago lembrar dos tais "sapinhos cozidos", e o bom senso de Harry não merecia ser novamente submetido às parvalhices de Giny – além do mais ele a estivera olhando de uma forma muito estranha nos últimos dois dias, quando todos voltaram a Hogwarts.

Talvez um dia volte. Talvez uma manhã você acorde lembrando de tudo, assim como acordou percebendo que tinha esquecido.

"...Pansy"

Giny ergueu os olhos, procurando a pessoa que havia dito o nome de Pansy Parkinson. Então se deu conta de que as pessoas tinham começado a sussurrar, e que fora Lilá quem murmurava para uma amiga que Pansy Parkinson estava sendo levada pelo diretor para o Hall enquanto dois homens – e quando Giny os olhou soube imediatamente que eram do Ministério, embora de algum departamento mais elevado, a julgar pelas vestes pretas e imponentes – a esperavam. Pansy levantara da mesa com o rosto nervoso quando Alvo Dumbledore se inclinou ao seu lado e discretamente lhe disse algo no ouvido.

"Eles são inquisitores", disse Hermione, olhando para os dois homens do Hall. "Como a Umbridge era."

"O que isso quer dizer?", perguntou Lilá ainda murmurando.

"Que Pansy fez algo grave."

Sentindo uma pontada na cabeça, Giny voltou-se para seu prato e seus cabelos deslizaram suavemente sobre seu rosto, o escondendo parcialmente, e nem Hermione nem Lilá, e nem ninguém no Salão Principal viu sua expressão de dor enquanto Pansy atravessava devagar o salão e saía para o Hall, com Dumbledore ao seu lado.


"Ele está em todos os jornais", disse Rony perplexo, passando depressa as páginas dos periódicos espalhados sobre a mesa. Em cada um deles havia na primeira página uma manchete em destaque de um rapaz alto acompanhado de um homem moreno e barbudo atravessando uma multidão de jornalistas no Hall do Ministério. O rosto do rapaz, no entanto, não aparecia em nenhum dos jornais, como se ele tivesse magicamente conseguido desviar os olhos de todos os focos ao mesmo tempo, deixando para os fotógrafos apenas a pista de seus cabelos platinados e sua atmosfera arrogante, que vazava pela imagem e pelas notícias como um cheiro intoxicante.

Giny e Hermione liam com cuidado cada manchete:

Filho de milionários herda império.

Invalidez de mãe e morte de pai fazem de Draco Malfoy o jovem mais rico da Inglaterra.

Mansão Malfoy coleciona assassinatos misteriosos.

Suspeita de assassinato é levada a julgamento.

Parkinsons alegam inocência da filha.

Debaixo de cada manchete algumas frases variavam nas notícias, mas eram em geral as mesmas: Lúcio Malfoy fora encontrado morto em seu escritório na noite de Natal, as investigações do Ministério apontaram morte por envenenamento, os empregados foram interrogados, Pansy Parkinson estivera com ele segundos antes, foi levada à julgamento, Draco Malfoy assinara no último dia 28 os papéis de sua herança.

"Ele não parece abalado", Harry falou, olhando para uma das fotos.

"Como Dumbledore por permitir isso?" disse Rony, "Quero dizer, eles vieram aqui e a levaram para o julgamento."

"Dumbledore fez a coisa certa", Hermione largou na mesa um dos jornais que estava lendo, "Se Pansy era suspeita pelo assassinato, ele nada podia fazer a não ser levar o caso para fora da escola."

"Mas isso não faz sentido", continuo Rony, "Porque Pansy mataria Lúcio Malfoy?"

"Para se casar com Draco e ficarem com a herança", disse Hermione, embora não parecesse muito convicta do som de suas próprias palavras.

"Tudo bem, isso poderia ser", Harry começou, "mas não acho que Draco aceitaria dividir sua herança com alguém."

"Talvez ele a mate mais tarde", Rony deu de ombros, no que Hermione soltou uma exclamação. "Não, é sério. Pensemos com a cabeça dele: ele seduz Pansy e a convence a matar o pai, com o pretexto de que se ele morrer, toda a herança Malfoy fica para eles, porque a mãe dele estava louca. Você sabia disso, Harry? Eu não sabia que ela tinha enlouquecido. Mas então Pansy mata Lúcio Malfoy, Draco sai fora e ela vai presa. É isso. E o desgraçado ainda fica com a herança."

Hermione bateu palmas artificiais. "Muito bem, Sherlock Holmes. Mas não creio que Draco mataria o pai. Sua versão está furada."

"Não, espere aí", disse Harry, inclinando-se para frente, "Talvez faça sentido."

"Harry, Draco não faria isso", insistiu Hermione, indignada, "Que motivo ele teria?"

Rony e Harry viraram-se para a amiga como se não a reconhecessem.

Ela emendou "Vocês estão sendo simplistas demais. Draco não teria porque matar o pai só pelo dinheiro dele, quero dizer, Draco não faz o tipo oprimido."

Giny ouvia a discussão com os olhos ainda pregados na imagem de Draco passando incólume entre as pessoas, seu perfil curvado numa postura reservada e importante. Dentre tudo o que fora dito até ali, a única coisa que chamara a atenção dela foi a observação de Harry: ele não parece abalado. Por mais que não desse para ver os olhos nem o rosto de Malfoy, as pessoas sabiam, por alguma razão fora daquelas fotografias, que ele não estava de fato triste pela morte do pai, da mesma forma que as pessoas sentiam, por razões igualmente inconscientes, que ele parecia mais ocupado do que abalado. E aquele homem ao lado dele, que Giny nunca tinha visto antes em lugar nenhum, era como uma espécie de conselheiro, de amigo, de acompanhante, ao julgar pelo modo como ambos andavam juntos, identicamente intocáveis.

Uma pessoa assim, Giny pensou, sem saber porque tinha tanta certeza disso, sabe de todos os segredos dele.

Hermione recolheu seus livros e jogou a mochila por cima dos ombros. "Estamos atrasados. Snape vai nos dar advertências."

Rony puxou sua mochila do chão e também ficou de pé.

"Ah", fez Harry dobrando os jornais, "vão indo, preciso pegar uma pena nova no meu malão."

Quando Rony e Hermione saíram pelo buraco do retrato, Gina se viu sozinha no Salão Comunal da Grifinória com Harry, que a olhava. O sol da manhã entrava pelas janelas superiores e acendia os olhos dele, que ganhavam uma profundidade infinita. Uma lembrança estranha pulsou na mente de Gina de repente, e ela desviou o olhar do de Harry, tentando reter depressa aquela imagem: um par de olhos, olhos claros, mas não conseguia definir a cor, não conseguia...fora tão depressa...

"Gina", Harry falou em voz baixa, passando para o sofá em que ela estava sentada. "Você..." ele a olhava como se tentasse ler algo na expressão dela, "você realmente não lembra de nada?"

Ela ficou alguns segundos em silêncio. Os olhos de Harry e aqueles outros olhos se mesclavam em sua mente como imagens se sobrepondo, mas o fato dela não saber que olhos eram aqueles era angustiante. No entanto, ela não deixou que nada transparecesse em seu rosto.

"Não", disse. "Lembro apenas que estava na enfermaria depois do jogo de quadribol. É a última coisa que lembro."

Harry refletiu. "Você desapareceu por uma semana, Gina."

Ela balançou a cabeça. "Eu me perdi. Na casa dos gritos. É normal..."

"Por uma semana?"

"Você sabe que as passagens secretas são muitas, é um labirinto..."

"Não."

"Você esteve lá! Você tinha o Mapa dos Marotos, por isso não se perdia, mas eu..."

"Gina..."

"Harry", ela colocou as mãos no braço dele. "Eu me perdi nos subterrâneos de Hogsmeade", ela disse devagar. "Foi isso o que aconteceu. E Madame Rosmerta me encontrou, e ela mesa disse que isso já aconteceu outras vezes. Há feitiços lá em baixo para desnortear pessoas, vocês ouviram ela dizer. Foi apenas isso."

Harry se encostou nas almofadas do sofá e deixou as mãos penderem entre suas pernas abertas, a encarando. "Você fez contato comigo."

"O quê? Não, eu..."

"Eu estava em Hogsmeade, na véspera do Natal, e você falou comigo."

Gina piscou.

"Insisti para que você me contasse onde estava, mas você se recusava. Falou coisas sobre tirar sangue das pessoas, eles, eles, eles."

"Eles quem?"

Harry ergueu as sobrancelhas. "Sim. Quem, Gina? Você não me disse. Será que estava delirando?"

"Não."

"Eu também não acho que estava."

"Porque você não contou a ninguém? Porque não me procurou?"

Ele se inclinou para a frente novamente, apoiando os cotovelos nos joelhos. Parecia contrariado. "Você não deixou."

Gina o olhava, perplexa. Nada fazia sentido. Ela pegou as mãos dele, nervosa. "Harry, eu não lembro. Eu juro a você que não me lembro."

Mas ele nada disse. Estava sério e a observava.

"Quando eu era criança", Gina falou, "ouvi dizer que nosso corpo tem defesas próprias."

"O que você quer dizer?"

"Não quero dizer nada...Só...Seja o que for que aconteceu comigo, eu esqueci. E acho que meu corpo sabe o que está fazendo."