III – Mikami Teru

Ele podia me ver.

Ele era o único. Na época, eu imaginava que não – às vezes tenho uma tendência a subestimar os humanos -, mas depois só pude concluir que sim. Porque ele falava comigo, sabem? Ele falava comigo, falava conosco enquanto dormia. Nós, os shinigamis. Os Deuses. Os Deuses da Morte, os Deuses dele.

Era toda noite. Ele nos chamava. Foi assim desde os seus doze anos, desde aquela coincidência que levou sua mãe e alguns colegas de classe. Francamente, quando fiz aquilo, estava apenas querendo brincar um pouco – ah, os humanos e sua obsessão em levar tudo tão a sério. Teru era o pior deles.

Ele falava dormindo, gritava e chorava também, e nesses sonhos falava de nós. Deuses que controlam a morte, sempre, pedindo sinais e orientações. Era barulhento, aquele garoto. E tudo por causa de uma simples brincadeira.

Teru não sabia brincar.

Desde sempre, fora um garoto centrado o suficiente para não conhecer brincadeiras e isso me intrigava um pouco. Quero dizer, crianças humanas tendem a brincar na infância e tornar-se sérias quando adultas, mas ele não.

Teru Mikami tinha um senso de justiça exacerbado e, não importava a situação, ele apenas queria defender aquilo que julgava certo. Justo. No começo, era interessante. Depois, tornou-se monótono. E foi essa monotonia que me fez querer brincar com ele, mas Teru não sabia brincar.

Não era como se não quisesse. Ele simplesmente não sabia.

E então vinham os gritos.

No início, desesperados, acompanhados do suor noturno e do medo estampado nos olhos. Da primeira vez que ele me viu, não foi capaz de dormir pelo restante da semana. Teru Mikami era sério, mas também era medroso. O humano mais medroso que já conheci.

Depois, ele começou a implorar.

Sempre assim. O choro, as lágrimas, os soluços. Por favor, me deixem fazer algo. Por favor, Deuses, me enviem um sinal de que fiz certo. Por favor, eu quero servi-los. Por favor-por favor-por favor. Irritante. Insuportável, com o passar do tempo. E, quando ele acordava, era pior.

Ele ficava parado.

Parado . Não dizia nada, não se movia, não piscava. Olhava para frente, apenas. Ficava olhando e olhando e olhando. Por horas, às vezes tardes inteiras. Encarando. Com os punhos fechados, tão fechados que as unhas deixavam marcas nas palmas.

Acho que, na verdade, ele tentava enxergar.

Mas não havia o que enxergar.

Porque ele só enxergaria o que nós desejássemos.

E eu não queria mais que ele enxergasse, porque aquilo cansava. O jeito de ele agir, a cega fé em algo que não enxergava, os pedidos, os pedidos, os pedidos.

Então um dia ele deixou de acreditar.

Deixou de rezar para nós e implorar por um sinal divino. No início, eu achei ótimo. Com o tempo, estranhei e resolvi averiguar. As rezas haviam se tornado tão constantes que era estranho não mais ouvi-las. O sinal divino havia chegado.

Para Teru, o sinal divino havia vindo em forma de caderno.

O caderno. O caderno de Amane Misa, passado por Yagami Light. Eu o reconheci, naquele momento. Ele segurava-o com força. A capa preta e os dedos agarrando-a. Como se temesse que aquilo fugisse. O seu sinal divino, a sua razão de viver. A maior recompensa por sua fé.

A única delas.

E então as orações passaram a ser para um tal de Kira.

Deus, Deus, Deus, era tudo o que você dizia a partir desse dia. Não eram mais o shinigamis, apenas Kira, Kira, Kira. Ele era o seu Deus, a pessoa que você venerava acima de qualquer outra.

Então você se esqueceu de nós, Teru.

Porque seu mundo restringiu-se a um único Deus, a um único objetivo: servir Kira, ser a ferramenta de Kira, venerar Kira, fazer a justiça (de Kira).

Você se tornou patético, Teru.

Nem por isso, menos interessante.

Eu ainda gostava de você, mesmo que só um pouco. Pelos seus desejos, pela sua obsessão. Você era engraçado.

Era divertido naquela insanidade, mas a melhor parte eram os contrastes. Ele saía de casa e era um promotor reconhecido, calmo e responsável. Lúcido. Seguia uma rotina quase assustadora de tão impecável. Era honesto, e esforçava-se ao máximo em todos os seus casos.

Aí ele voltava.

E ele escrevia naquele caderno, e quando terminava não o guardava. Observava. Letra por letra, todos os detalhes, até decorar e esquecer-se de novo.

E não eram somente os nomes que Teru escrevia.

Ele arrancava páginas de outros cadernos, escrevia pedidos. Orações. Mandamentos. Kira-Kira-Kira. Marcando as folhas com força, às vezes rasgando-as e reescrevendo tudo de novo. E depois acendia o isqueiro, queimava-as porque o mundo não está pronto, ainda não, e porque Deus não podia saber que contatara um dependente. Mas Deus sabia tudo, não?

Ou, ao menos, deveria saber.

E aquela obsessão, a insanidade que, aos poucos, tragava tudo de bom que pudesse ter restado nele, o consumia lenta e dolorosamente. A tinta espirrava no caderno, os calos se formavam nos dedos. E quando alguém perguntava Teru, por que seus dedos estão tão calejados? Ele apenas respondia que Estou trabalhando demais. No fim, não era mentira.

Só que ninguém era capaz de imaginar que o trabalho era matar por Kira. Porque, na mente das pessoas, Teru Mikami era justo demais para ser a favor de um assassino como Kira. O que as pessoas nunca notaram é que, quando se é justo demais, essa justiça toma conta do ser.

Ah, Teru, você era um viciado em justiça.

A justiça. Você a imaginava com uma forma definitiva, sempre. Punindo os criminosos. Incompreendida pelos outros (aqueles desgraçados imbecis). Acabando com os planos de pessoas más. Matando-as. Destruindo-as por completo. Para você, a justiça tinha o rosto de Deus.

E era nela que você pensava, quando pegou o ônibus para aquele galpão isolado, seguindo as ordens que recebera.

Pensando naqueles pedidos durante o sono e desejando poder implorar novamente.

Agarrando o caderno como se ele fosse fugir.

Mas o que você não notou é que ele já tinha fugido. Sido levado de você.

Era tudo sistemático demais para que você pudesse notar. O trabalho, a academia, escrever no caderno, preenchendo sempre uma página por dia – nem mais, nem menos. Sempre uma página. Tudo muito sistemático.

Então, a cada passo que você dava, a cada passo que se aproximava do galpão, você apertava mais os dedos contra o caderno, marcando-o com suas digitais, mas nunca amassando-o ou violando as páginas. E quando você abriu a fresta da porta e viu aquelas muitas pessoas, você só buscou por uma: Deus.

Você viu Halle Bulook, Touta Matsuda, Anthony Carter, Stephen Loud, Aizawa Shuuichi, Ide Hideki, Nate River, Mogi Kanzo e ele. Seu Deus – o único cujo qual você não podia enxergar a expectativa de vida -, Yagami Light.

Ele era jovem, parecia até mais novo que você. Mas o que lhe chamou a atenção estava nos olhos, não foi, Teru? O olhar dele tinha o mesmo brilho louco que você encarava no espelho todas as manhãs.

Você não podia ver sua expectativa de vida, mas, se pudesse, teria gritado.

Seu Deus estava à beira da morte.

Seu Deus estava à beira da morte e tudo que você pôde fazer foi escrever. Escrever e então contar. Como você sempre fez.

Quarenta segundos.

E você falhou.

Porque não foram eles que caíram. Nenhum deles. Quando o ponteiro alcançou os quarenta segundos, todos continuavam de pé. E então aquele jovem de cabelos brancos – o albino de mãos pequenas com a máscara na mão - disse para que você se juntasse a eles. E ele também disse outras coisas que você não foi capaz de distinguir, Teru. Você já estava louco.

Ficou ainda mais quando ouviu seu Deus te negar.

Você havia falhado e Yagami Light (Kira, seu Deus) o negou.

Por culpa sua, Teru.

Por culpa do seu fracasso.

No fim, você voltou a nos ver.

Transitando pelas paredes da cela, procurando falar com você. Mas você não queria mais. Não queria mais ter fé.

Sumam, vão embora, me deixem, eu não posso falhar com Deus novamente, sumam, sumam, sumam.

Dez dias depois, a morte foi buscá-lo.

Irônico, não é?

Por causa do seu Deus, você morreu trinta anos antes de sofrer um ataque cardíaco.

E você contou, contou cada segundo antes de se sufocar.

Quarenta segundos.

Você falhou, Teru.

X

N/A:

Olá, olá, meros mortais!

Cá estou eu com um novo capítulo para alegrar suas monótonas vidinhas!

Pois bem, confesso que demorei um bocado para fazê-lo, mas é porque não ando tendo tempo por conta dos vestibulares. No entanto, este capítulo foi uma questão de honra!

Eu queria fazer um excelente capítulo em homenagem ao Mikami (PEGAEL!), e demorou um pouco até que o resultado me satisfizesse. Anyway, aguardo seus elogios... Digo, suas reviews. Beijos!

Reviews são muito bem vindos quando há neles críticas construtivas e elogios. Sei muito bem que eu ainda preciso melhorar. Todos precisam. Aprecio a opinião individual de cada um.