Prefácio
Sempre gostei muito de histórias fantásticas, alegóricas e cheias de surpresa. Nem preciso mencionar, então, a fascinação que tenho por contos de fadas. Quando precisei escrever algo para a sugestão de tema "segredo", logo me veio uma história que se moldasse a essas preferências e fosse tão interessante quanto um registro de Grimm ou uma criação de Andersen. O resultado dessa necessidade você pode conferir logo abaixo como o primeiro conto de fadas da série "Contos de Wing", todos inéditos e construídos sobre inúmeras inspirações e referências do imaginário folclórico de diversas partes do mundo.
Cada conto se centra sobre um número limitado de personagens, normalmente um casal, que pode ser do canon ou uma combinação de personagem da série e personagem original, envolvido em problemas e assuntos maravilhosos assim como se espera de herois e donzelas vivendo aventuras incomuns, que desafiam nossa lógica e aguçam a imaginação.
Espero ser capaz de pintar belos quadros, criar muita tensão e emoção bem como encantar e divertir com cada história apresentada.
Boa leitura!
"Mestres do Segredo"
ou
"A chave certa"
Parte 1
Havia muitas coisas desconhecidas a respeito daquele castelo, o que não parecia certo, dado a quantidade de tempo em que ele estivera lá, encarapitado no pico da montanha de pedra branca, vigiando a aldeia. Tanto que a sombra constante que a edificação lançava era ponto de referência, pedra de toque da realidade. Por séculos a região toda falava dos mistérios que habitavam as propriedades do barão. Lendas desfiavam-se em múltiplas versões nas direções dos quatro ventos, tentando explicar a natureza ora fascinante, ora fantasmagórica, ora inexplicável, ora inacreditável daquele lugar.
O barão em si, sempre bem guardado atrás das muralhas, era o mistério principal e só uma pessoa da aldeia podia afirmar que o vira. Este era o chaveiro. Periodicamente, ele era chamado para fazer sistemáticas verificações e alterações nas fechaduras de todas as salas do castelo. Como havia muitas, não raro o intervalo entre o fim e o início de uma verificação era mais curto do que a duração da verificação em si.
A única vez em que o chaveiro viu o barão foi quando assumiu o serviço após o falecimento de seu mestre. Responsável por cuidar daquilo que protegia os inúmeros tesouros da casa, passou por uma apresentação oficial ao dono da propriedade. Conversaram no grande escritório oval, requintadamente mobiliado e decorado, exatamente como se esperaria de uma moradia nobre. Em pé, atrás da grande mesa de ébano, estava o barão, um homem esplêndido, abundando em vigor e juventude. E na parede atrás dele, havia um retrato seu, tão perfeito, que era como olhar para duas da mesma pessoa. O chaveiro, naquela época moço, recebeu inúmeras instruções e teve de fazer um voto de confiança. Como era o único a quem o castelo estava aberto sem restrição, precisava ser o mais discreto o possível sobre o que veria lá.
Durante todos os anos de trabalho pelos corredores e salas do castelo, o chaveiro nunca encontrou nada que justificasse tamanha aura de segredo além de grandes quantidades de pedras preciosas e joias. Era certo que um castelo estaria lotado de riqueza e manter tanto sigilo e desvelada proteção sobre isso parecia sem sentido. Mesmo assim, decidiu cumprir o voto de confiança que dera.
Segundo a tradição, o chaveiro tinha seu aprendiz e instruía o rapaz sobre tudo que ele precisava saber quanto à função que um dia também exerceria, inclusive sobre o voto de confiança e sua opinião sobre a excentricidade do barão.
E nos meses em que ele trabalhava no castelo, o aprendiz ficava na oficina na aldeia, servindo os moradores da região, ficando cada dia mais perito na arte de montar e consertar fechaduras intrincadas que eram obras de arte. Ele tinha grande prazer em trabalhar com aqueles mecanismos e entendia-os tão bem que era como se, de fato, houvesse nascido para lidar com eles. O velho chaveiro sempre o elogiava, orgulhoso:
_Você fará coisas maiores do que eu.
Naquele fim de noite, o senhor se arrastava devagar pelo assoalho um pouco carcomido, escolhendo peças e organizando as ferramentas que precisaria para iniciar o trabalho no castelo, pois no próximo dia, retornaria após um descanso de dois meses. A primavera acabara de se iniciar.
O rapaz nem desviava os olhos azuis da bancada, iluminada por uma vela que acabara de acender. Por ter crescido manejando os engenhos complicados e delicados, havia desenvolvido muito sua concentração e raciocínio, mas, por outro lado, tornara-se introvertido e calado. Criara predileção por ouvir ao invés de falar. Não fizera muitas amizades. Em seu dia de folga, somente ia caminhar um pouco pela floresta, caçar alguns patos para depois descansar um pouco na oficina.
O galo do vizinho disparou seu primeiro canto quando viu o halo solar despontar atrás de uma colina. O velho chaveiro saiu de sua cama de couro e aprontou-se. Buscando o cavalinho, começou a fazer o tão bem conhecido trajeto até o alto da montanha.
O aprendiz levantou algumas horas depois, e, tomando um desjejum rápido, retomou os trabalhos da noitinha anterior.
Os dias passaram sem novidades, conforme sempre tiveram passado naqueles sete anos em que o moço trabalhara ali. Contudo, já era hora de algo acontecer.
Heero ouviu a porta ser aberta graças ao sino que havia sido pregado nela. Algum cliente devia ter chegado.
Do outro lado do balcão, um homem alto e magro o afrontou de dentro de um capuz azul-jacinto.
_Meus pêsames, aprendiz. Seu mestre teve um mal súbito ontem. O barão o está convocando imediatamente. Arrume seus pertences e queira me acompanhar. –a voz que falava do fundo da orla de tecido era simplesmente séria e solene.
Franzindo as sobrancelhas espessas diante do golpe, o rapaz pensou um pouco na nova informação. Não teve muita reação, não comentou nada. Suspirou, assentiu, e correndo a mão pela franja, olhou o entorno decidindo o que precisava. Preparou uma trouxa rapidamente, fechou todas as janelas e portas e deixou a oficina.
O mensageiro o aguardava do lado de fora, já montado em um cavalo alto e havia trazido o cavalinho do chaveiro.
_Seu mestre foi sepultado no cemitério do castelo esta manhã. Ele não tinha mais nenhum parente vivo, não é?
_Não, senhor.
A subida não era íngreme, apenas longa. O vale ia se abrindo a cada metro vencido, Heero olhava para o lado e enxergava toda a aldeia e as fazendas vizinhas em meio às campinas verdes, e o rio junto das colinas desenhavam a fronteira com o céu suavemente azul, enfeitado de nuvens grandes e macias. Inegavelmente, era um belo quadro.
E quanto mais caminhavam, maior parecia o castelo que se revelava, mais finas e altas pareciam suas duas torres e mais ostentoso o momento se tornava. A cada passo, Heero dava-se conta de que chegara sua vez de ser introduzido nos segredos do velho castelo, mas nada em especial agitava seu espírito.
O quadro estava lá no escritório, assim como o velho chaveiro descrevera. Era assombroso como a imagem da pintura era a perfeita reprodução do homem parado de costas para ela. O sorriso do barão tinha qualquer coisa de capcioso, embora fosse sua cordialidade e distinção o que prevalecia. Alto e forte, jovem e confiante, era assim que se parecia o barão Treize Khushrenada.
Heero o ouviu detalhar todos seus termos e comandos, concordando somente com movimentos de cabeça.
_Tu estás pronto a assumir a tarefa que lhe é destinada, meu jovem?
_Eu fui preparado para ela desde o início.
_Recebo-te em minha morada e abro minhas portas para tu apenas se prestares o voto de que nenhuma pergunta será feita, nenhuma informação será questionada e que, ao retornar a tua vida lá embaixo, nenhum segredo será revelado.
_Estou aqui para fazer meu trabalho e nada mais.
O barão assentiu e dispensou o novo chaveiro para que ele fosse começar suas atividades. A obsessão pela segurança das salas do prédio soava como tolice a Heero, que agora tinha de devotar a vida para cuidar para que os duzentos trincos funcionassem perfeitamente. E assim como o velho chaveiro disse, poucas pessoas habitavam o castelo, a maioria das salas abrigava tesouros impossíveis de contabilizar. Obras de arte, livros, tapeçarias, joias – cada porta revelava uma linda coleção.
O velho chaveiro sempre tinha sido prestimoso e o rapaz pouco esforço precisava empregar para a manutenção dos fechos e depois de uma semana estudando as trancas, consertando e alterando mecanismos, Heero tinha conhecido toda uma ala da construção e estava pronto para incursionar na próxima.
Sem medo de entregar-se ao trabalho, começava logo depois de tomar seu desjejum e ia até bem depois da meia-noite, só precisava de um pouco de sono para estar pronto para o outro dia.
Aquela ala era curiosamente escura e silenciosa, um tanto fria. Nunca ninguém passava por ali. A maioria das salas de janelas cobertas por cortinas pesadas estava vazia e, por isso, ficava destrancada, mas algumas continham mobílias cobertas por lençóis, tudo de madeira da melhor qualidade e em perfeito estado de conservação.
Não era exatamente o melhor lugar para se passar tanto tempo.
Às vezes escutava tímidos ruídos metálicos que não vinham de seus instrumentos e sons de madeira se arrastando que não eram provocados pelas portas que ele abria, apesar de ser o único ser vivo presente naquele longo corredor de pedra.
Por fim, alcançou a última porta.
Suas dobradiças tinham sido fustigadas pelo tempo, revelando que há muitos anos não eram usadas e toda a folha estava empoeirada, enfeitada de teias de aranha.
Nenhuma das chaves do molho que Heero trouxera consigo naquele dia servira na porta. Por precaução, tentou todas duas vezes, pacientemente, a cabeça colada à superfície, completa atenção focada no ruído das travas dentro do ferrolho, querendo captar o motivo das respostas negativas, preocupado em não desgastar ou danificar as peças.
Analisou a porta por alguns minutos, intrigado.
Será que seu velho mestre nunca havia se deparado com aquela porta?
Ela ficava mesmo em um canto tão escuro…
Nunca fora informado de que havia uma fechadura que lhe fosse proibida e que seu serviço deveria passar longe dela.
Qualquer coisa ali lhe estava sendo negada.
Já era tarde e o combustível da lamparina vinha a tempo dando sinais de que se escasseava, assim, Heero preferiu voltar para seu aposento e trabalhar na montagem de alguns cadeados e retornar ali na manhã seguinte.
Nunca ansiou tanto por um nascer do Sol.
Nem quis tomar o pequeno almoço.
Saiu da cama pronto, porque nem tivera se dado ao trabalho de trocar-se para dormir, apanhou os demais conjuntos de chaves e ferramentas e partiu.
Ficou quase uma hora testando chaves naquela fechadura mimosa. A maioria se provou grande demais para se encaixar. Cada tentativa frustrada criava em seu humor estável uma ruga de irritação. Decidiu que ia desmontar a tranca, porque sua paz mental agora dependia de vencer aquele desafio.
E ainda assim, não havia nada que seus instrumentos pudessem fazer. Não encontrava saliências, pregos ou encaixes de modo a remover a peça da porta.
Esmurrou a porta uma vez e começou a se afastar, fazendo o caminho de volta, o eco de seu golpe seguindo-o e ultrapassando-o até que um barulho novo lhe captou a atenção, fazendo-o voltar-se sobre o ombro imediatamente.
De dentro da porta, pairando sobre o chão, saíra uma mãozinha branca. Ela segurava uma bandeja retangular, amassada e escurecida da idade, que depositou no chão com um leve retinir metálico.
Seriam seus olhos? A mão desapareceu tão rapidamente quanto surgira. Deixara para trás uma claridade fantasmagórica.
Ao retornar para averiguar o que era aquela bandeja, ele viu-a forrada de pedrinhas transparentes perfeitamente lapidadas em formatos delicados e multifacetados de navete. Eram de tamanhos variados, apropriados para a ourivesaria, e brilhavam, cristalinas. Todas diamantes. Agachou-se e remexeu entre as gemas pequeninas com os dedos, encontrando dificuldades em escolher a reação apropriada.
Estudou a porta, percebendo enfim uma irregularidade na folha – havia uma tábua móvel e fora o barulho dela sendo deslizada que lhe surpreendeu minutos atrás a tempo de assistir a estranha cena.
Os segredos daquele castelo não podiam ser mencionados.
Heero não conseguia desviar a vista do obstáculo que o privava de entender o que havia dentro daquela sala.
E apesar da proibição, os segredos daquele castelo eram inquietantes demais para serem simplesmente ignorados.
Não ficavam dúvidas de que havia um prisioneiro habitando o cômodo, já que este havia sido cerrado de modo que jamais fosse aberto outra vez, e, de fato, era mesmo como se aquela porta tivesse sido movida derradeiramente há cinquenta anos. O motivo para tal agressivo cativeiro era impossível de se tocar, contudo, havia sutilezas ainda mais perturbadoras: como podia ser assim, um ser com meio século ou mais de idade e mostrar ainda uma mão tão delicadamente linda e lisa? Como podia ser que alguém era mantido cativo por tantos, tantos intoleráveis anos, sem murmurar um protesto sequer, e tolerar viver mergulhado no silêncio sepulcral daquela ala? E mesmo diante da presença de alguém, não tentava fazer nenhum contato.
A natureza da criatura atrás daquela placa de madeira e de sua atividade deixava a imaginação e a intriga dele exaltadas.
Buscou deslizar a tábua de madeira, desejoso de vislumbrar o que estava escondido naquele aposento. O vão que ela criava era de vinte e cinco centímetros, o que não prometia muita coisa para saciar a curiosidade dele.
Só via uma claridade débil lá dentro, sem poder divisar qualquer peça de mobília ou perceber movimentação, apesar de repente começar a captar um tilintar leve que instigava.
_Não quero seu mal. Venha para cá… –ele explicou, a voz saindo áspera devido ao esforço de abaixar-se para espiar pela passagem. Seus olhos seguiam no aguardo.
O tilintar prosseguia, esparso.
_Sabe como posso abrir esta porta? –e sentando-se no chão, olhou a bandeja a seu lado outra vez, questionando. Limpou as mãos da poeira que a madeira soltara.
Houve um intervalo então.
Heero não fez nada além de permanecer no lugar e vigiar a fechadura, agora no alto, e sentia que ela zombava dele. Em seu imo, instalou-se grande urgência em quebrar aquela tranca e a sensação era imperativa e pressionava-o mais a cada segundo. O porquê ele não sabia, creditava ao clima misterioso que permeava densamente todo seu arredor.
Agora que vivia nas dependências do castelo, de repente tinha se tornado um segredo também e não tentava mais entender seus próprios motivos ou suas reações.
A mão surgiu outra vez pela abertura. Os dedos finos seguravam um pedaço de tecido duro e grosseiro e, com cera de vela, uma única palavra fora mal traçada, uma letra escrita ao contrário: socorro.
Juntou suas ferramentas, apanhou os molhos de chaves. Amarrotando o pano, enfiou-o no bolso e saiu dali com uma pressa nova, confuso. Não sabia o que fazer e não queria mais ficar ali. O ar tinha se tornado pesado, poluído de melancolia. Ouviu uma pancada na porta que deixava para trás e foi o mesmo que ter um prego enfincando-se em seu peito. Ousou voltar-se, lançar de relance um fito vazio na sombra deitada sobre o fim do corredor.
Perguntas não deviam ser feitas porque as respostas certamente eram assombrosas.
Tentou almoçar antes de dedicar-se ao trabalho na terceira ala do castelo. Comeu pouco, mas não fez diferença. E ao passo que retornava a seu trabalho, sentia o bilhete de tecido em seu bolso como que o cutucando. O que ele poderia fazer a respeito? Não imaginava forma de abrir a porta, e mesmo que descobrisse como abri-la, que explicação ofereceria ao barão por ter libertado um prisioneiro?
Atormentado demais para dormir, depois que deu por encerrado seu dia e se recolheu, ficou olhando a grande Lua amarela espalhar seus raios sobre a aldeia adormecida, metros abaixo de si. Sabia que aquilo era material para uma pintura. A beleza da cena, sua serenidade romântica e poesia triste faziam mais vivas as recordações do que se passara naquela manhã. Um pedido de socorro… como é que poderia ignorar?
Procurou por sua lamparina.
Se normalmente as passagens do castelo eram desertas e quietas, durante a noite, caminhar por elas era como vagar pelo próprio esquecimento. O único instrumento que trazia consigo era um pé de cabra. Ia derrubar a porta feito um invasor comum, teria de se desnudar de suas habilidades minuciosas de chaveiro, já que elas foram completamente inutilizadas pelo segredo daquela fechadura.
Talvez, por dentro, o dispositivo apresentasse alguma facilidade em ser desvendado, desmontado e substituído. Afinal de contas, seu trabalho era zelar de que todas as trancas funcionassem perfeitamente…
_Sou eu. –com os nós dos dedos, acertou a porta algumas vezes antes de avisar.
Prestou atenção que a bandeja com as pedras não estava mais ali, por isso, questionou a eficácia de sua identificação limitada. Não era o único que sabia daquele lugar, de fato.
_Sou o chaveiro. Eu vim te ajudar. –e resolveu detalhar, embora seguisse muito breve em suas declarações. –Fique longe da porta.
Era um rapaz esguio, condicionado a movimentos precisos, nada amplos ou enérgicos, mas exercitava-se bastante por cortar e carregar lenha todos os invernos para seu velho mestre, bem como em consertar os telhados e cercas, de modo que não viu muita dificuldade em forçar a porta com o pé de cabra. Demorou um pouco, mas enfim a tranca cedeu e ele escutou que, dentro da cela, a maçaneta caiu, já que de seu lado não havia nada mais do que o orifício da fechadura.
A porta percorreu o ângulo de sua abertura vagarosamente. A luz da lamparina não era suficiente para revelar o que podia ser encontrado no interior do cômodo, apenas criou uma circunferência no chão de pedra lisa e fria. Como os olhos quase nada podiam captar, os ouvidos se aguçaram duplamente para o barulhinho de metal se arrastando e acertando o chão e um inesperado aroma cansado de alfazema se pronunciou.
Embora tivesse desejado tanto e se aplicado tanto para isso, agora que descerrara a porta, viu-se incerto de adentrar.
Aos poucos, o ambiente foi preenchendo-se de uma luz débil e sedosa que vinha do Luar, a ponto de que um vulto pudesse ser localizado, imóvel, próximo da parede que encarava a porta.
_Não tenha medo… –ele murmurou, a curiosidade arrastando seus passos para o interior da sala, a lamparina sendo alçada por uma mão e trazida a frente do corpo.
A auréola de luz que a chama providenciava emoldurou na parede a figura que nela se encurralava, tensa.
Por maior que fosse a certeza de que havia alguém na cela, nada poderia ter preparado Heero para a aparência dessa criatura, porque a beleza dela era incomparável a tudo em que ele já havia posto olhos.
Com lentidão encantadora, a moça foi se desencostando da parede e se aprumando, caminhando felinamente em encontro do rapaz. Tirou da frente da face uma meada de fios lisos de cabelo que a luz insinuava serem muito compridos e de um louro escuro.
_Você está bem? –murmurou, rouco, porque o silêncio estava opressor.
Heero a notou assentir. Depois, ela sorriu, timidamente, feito não tivesse muita prática.
Os passos dela eram seguidos pelo som de metal e quando achou que estava perto o suficiente dele, juntou as mãos na frente do peito e ficou brincando com elas, analisando o rapaz com atenção infantil.
Fazia anos que ela não via alguém. Nem saberia dizer quantos, por mais que se esforçasse em acompanhar quantas vezes o Sol e a Lua se sucederam em seu domínio do império do céu. De qualquer modo, sentiu que era dispensável obter um número. Nunca fora importante e a presença daquele moço reforçava isso.
Finalmente surgira alguém completo para ela, que não temeu o barão e que não hesitou diante do desafio ou do desconhecido.
A alegria que subiu ao seu peito foi intensa, pressionou seu coração, fez com que ele perdesse seu compasso e rufasse em celebração. Fez seu sorriso ficar maior, contagiou seus olhos azuis, emitindo com sua expressão uma luminosidade pura, tão sincera, que logo lágrimas começaram a escorrer pela face perolada. Cada pequena gota que escapava dos olhos dela rolava e, ao cair, produzia um barulhinho, parecido com o da chuva, quando acertava o chão. A moça avançou um pouco mais, apanhando a mão livre dele e trazendo-o completamente para dentro. Depois, deixando-o, fechou a porta, embora ela não trancasse mais, criando uma fresta apertada.
Andou em torno dele, levou uma mão aos lábios, mordia a unha do dedão, risonha. Esticou sua mão esquerda, brevemente tocou o ombro do rapaz. Alisou as rugas da roupa dele, lentamente, até que o viu mover-se um passo para trás, estranhando a reação dela. Desse modo, ela se afastou também, mordendo então as pontas das outras unhas, e seu olhar surgira tão vivo como um par de aves azuis pousadas na face de uma estátua marmórea.
Incomodado com a meia-luz, Heero observou os arredores e notou que uma vela solitária estava acesa e tomou sua chama pequenina para acender as demais velas espalhadas sem planejamento pelo cômodo, a maior parte perto das paredes. As janelas da sala eram muito altas e estreitas, beirando a parede, e não permitiam que muito do Luar fosse acolhido. A lamparina também já não satisfazia mais Heero com sua luz concentrada.
Nada ainda partira da moça para quebrar a quietude. Ele olhava-a de esgueira enquanto executava sua tarefa. A garota simplesmente manteve-se parada bem no centro do ambiente, acompanhando cada movimento dele.
Não disfarçava seu prazer da companhia. Esperara tempo demais para contê-lo ou ocultá-lo. Pregara os olhos no rapaz, deslumbrando-se com a revelação gradual da figura dele. Nunca errava ao julgar pessoas, fazia parte de sua constituição – o designara belo em todos os sentidos.
Primeiro, percorrendo a imagem dele, encontrava traços interessantes, firmes e mesmo assim refinados, de um charme sutil e irresistível. Sua profissão e suas roupas atestavam que tudo o que ele tinha fora a natureza que lhe dera – os olhos azuis de um tom singular, feito de uma mistura das ondas do mar com as nuvens de uma tempestade de vento, os lábios de linhas equilibradas, nem tão delicados, nem tão largos, a face em ângulos perfeitamente arranjados de forma máscula, jovem e sedutora.
Depois, assistindo-o, rememorando o timbre rouco e decidido de sua voz, concebeu que o coração dele era um livre de vícios e cingido de qualidades simples, mas atraentes, especialmente em um ser humano. Ele parecia extremamente confiável, inteligente e audacioso, mas concentrado e paciente. Gostava do que a presença dele causava nela, de como ganhava aquela certeza de que vivia e de que alguém se lembraria dela não pelo que ela fazia, mas por quem era.
Decidia que ninguém mais preparado poderia ter chegado à porta dela.
Enfim, a sala se preencheu de uma tonalidade suave de sépia. A ligeira tremulação das chamas contribuía para a atmosfera de sonho.
Heero percorreu a figura da moça outra vez, não podia evitar. Ela usava um vestido de corte simples feito de várias camadas de tecido leve que parecia um pouco maior do que o talhe que o trajava. A bainha da saia parava um dedo acima dos tornozelos, destacando a corrente presa em um deles. Era muito fina, os elos pareciam frágeis, porém o modo como brilhavam revelava que eram feitos de algum metal raro que não se deteriora com o tempo.
Por mais que a porta tivesse sido aberta, a moça não poderia sair.
_Meu nome é Heero. –ele aproximou-se e informou. Esperava que ela respondesse.
Percebeu que os lábios bem desenhados dela se moveram, repetindo o nome dele, contudo, sem produzir som.
_O que houve com você? Não pode falar?
Ela meneou a cabeça, sua face exibindo um combinado de conformidade e confusão. Levou a mão à garganta e fez gestos de que algo fora arrancado de dentro. Depois, abaixou-se, mexeu na corrente e foi repetindo as ações até Heero compreender que quem a prendera ali de algum modo lhe roubara a voz.
_O que você faz presa aqui?
Ainda agachada, olhou o chão a seu redor e colheu dele uma pedrinha. Ergueu-se brincado e olhando-a de modo entretido para somente depois a entregar a Heero.
Era mais um daqueles diamantes. Este, entretanto, estava lapidado em um quadrado do tamanho de um grande botão de casaco.
Heero não conseguia entender.
Olhava a gema e a moça intercaladamente, sem poder estabelecer relação entre elas.
Notando-o intrigado pela forma que os olhos dele chamejavam quase insultados, ela apanhou de volta a pedra e, levando-a a face, encostou à borda inferior de seu olho e desenhou com ela uma linha semelhante a que o pranto cria quando é derramado.
As lágrimas dela tornavam-se diamantes.
Heero deu um passo para trás. Uma fada! Era por isso que a pele dela tinha um viço perolado e que as íris dela cintilavam cheias de estrelas.
O barão a mantinha ali inescrupulosamente e obtinha seus tesouros por meio da tristeza dela.
_Não é justo. Você não pode continuar sendo tratada assim. Eu vou te tirar daqui. –e sua reação imediata e instintiva foi essa.
Ela sorriu, enlevada. Assentiu e nem se preocupava em como ele executaria a façanha. Qualquer dúvida perdia a força no peito dela quando o mirava. Sentou-se no chão, arrumou sua saia, e suspirou, contemplando-o.
_Eu vou embora agora, preciso preparar uma fechadura nova para sua porta. Ninguém pode saber que estive aqui. Coloque algo que prenda a porta no lugar. De manhã, volto para montar a nova tranca. –explicou.
Atenta e submissa, ela concordou. Assistiu-o sair e depois, apagando as velas de um candelabro, arrastou-o para segurar a porta.
Heero decidiu não deter-se muito ao mistério que começava a desvendar. Sabia que era inútil tentar entendê-lo tão cedo.
E não via a hora de vê-la outra vez.
Ficara tão impressionado por ela, nem se reconhecia.
Passou o resto da noite criando um mecanismo como nunca outro, tão delicado e complexo que estava de fato à altura do segredo que protegeria depois de instalado. Parecia impossível fabricar algo semelhante em tão poucas horas, mas revestira-se de uma urgência tão intensa e de uma disposição tão pujante que era como se tivesse sido enfeitiçado.
Nem parou para pensar em quão impressionante fora o resultado de seu trabalho e em quão orgulhoso seu velho mestre se sentiria se o pudesse ver. Regressou para a cela, cheio de discrição, porque sua atividade não poderia ser notada.
Quando bateu na porta, de leve, foi prontamente atendido. Ela surgiu para ele cheia de alegria, tal qual por anos tivesse desejado receber alguém daquele modo, fazer sala, falar de amenidades. Sorria para ele com a liberdade de uma velha e boa amiga. Sua acolhida era agradável, Heero não conseguia se esquivar. Contudo, não disse nada, só espalhou seus instrumentos e as peças e começou a trabalhar com grande diligência.
Sentada no chão há uma distância confortável, ela seguia os movimentos de Heero com a vista ao mesmo tempo em que mexia com alguns bonecos de animais que tirara da estante à direita da sala. Brincava com as peças de madeira e pintura desbotada e o assistia sem se cansar com os olhos vivos diante a variedade de instrumentos estranhos sendo manejados.
A manhã toda foi passada no desmonte da velha e marrenta fechadura.
A tarde toda foi dedicada à instalação e montagem da nova.
O Sol se punha em algum lugar do grande céu lá fora quando ele deu para ela a chave.
O sorriso que ela exibiu foi lindo, mas Heero não aproveitou de sua lindeza e resistiu ao seu grande encanto, tomando-o por triste e cheio de condenação e completamente dispensável. Fez assim porque não tinha apagado da mente a ideia de que ela não poderia sair, não enquanto a corrente não fosse partida.
Enquanto organizava seus pertences, tentou falar com ela.
_Ninguém mais sabe que você está aqui?
Graciosamente, ela deu de ombros, fazendo uma expressão de completa falta de resposta. Apontou para ele, respirou fundo, sacudiu a corrente e depois voltou a dar de ombros. Gostava de repetir suas mensagens para ter certeza de que se deu entender. E seus gestos eram cheios de personalidade, tão precisos e elegantes quanto vivazes e infantis, satisfazendo as necessidades do momento.
_Há quantos anos está aqui?
Ela meneou a cabeça, um olhar vago riscou sua face. E a transparência de suas feições era mais imaculada do que dos diamantes que chorava.
_E qual é o seu nome? –de repente, finalmente, aquilo pareceu algo importante para se saber. Heero decidiu tentar descobrir. Como ela era letrada, certamente saberia marcar para ele no couro de um de seus estojos de ferramentas.
E para essa pergunta, ela ofereceu uma mudança de atitude. Suspirou e esmoreceu. O esplendor fantasmagórico que sua pele emitia se intensificou.
Balançou a cabeça, amarga. Correu a mão por uma mecha de cabelo caída em seu ombro, e só depois ergueu seus olhos azuis acesos para ele.
Passando a mão pela testa, gesticulou de modo que parecia estar secando-a e jogando fora o excesso de água. Fez isso várias vezes.
_Você se esqueceu?
Ela assentiu, mostrando-se profundamente entristecida. Então segurando a corrente com as duas mãos, sacudiu-a e mostrou a chave que ganhara dele.
Sim, ele precisava descobrir como soltá-la.
_Deixe-me ver… –resmungou, prático.
A corrente era muito longa e começava do centro do ambiente. Seu comprimento permitia que a garota alcançasse todas as extremidades do ambiente, mas a proibia de por um pé para fora do umbral. Ele averiguou que o início da corrente estava preso em uma das lajotas do chão, porém sem argola, como se fosse uma flor e tivesse brotado ali.
A moça meneou a cabeça e sacudiu as mãos. Perscrutou fundo nos olhos dele, de repente tão perto dos dela, e suspirou.
Heero abaixou-se perante ela e delicadamente puxou-lhe o tornozelo preso. Nenhum fecho se revelava ali, a corrente era inteiriça e terminava feito tivesse sido fundida em si mesma.
_Posso tentar serrar. –murmurou. Levantando a vista percebeu ela negar com a cabeça e as mãos, derrotada. –Por quê?
Uma segunda vez, ela lhe mostrou a chave.
Com seus dedinhos leves que desenhavam no ar, foi demonstrando que para libertá-la, era necessária uma chave. Por mais óbvia que fosse essa informação, a natureza dessa chave desafiaria o raciocínio.
_Que chave seria essa? Você sabe?
Com uma vela que acabara de apagar, ela escreveu no chão: nome.
Heero franziu suas sobrancelhas espessas.
_O seu nome?
Sim, sim – ela assentiu muitas vezes, pressurosa, os lábios se apertando tensos, aparentando ainda mais macios do que eram.
_Onde posso descobri-lo?
Muito desanimadamente, ela deu de ombros. Como desejava poder dar resposta diferente! Seus lábios perfeitos continuavam se premendo. Em seguida deixou mais um daqueles suspiros pesarosos escapar, olhando o chão, aparentando acinzentada.
_Não quero que se preocupe mais. Darei um jeito de descobrir. –tentou soar encorajador, percebeu que ela esboçou um sorriso, suas bochechas se erguendo e apertando um pouco seus olhos. –Pode ser que eu demore em voltar. Não quero levantar suspeitas. –Desapontamento toldou imediatamente a face dela que nada deixava de expressar. –Eu não vou te abandonar. –garantiu, assim.
Ela assentiu, dando sua atenção para um ponto qualquer do chão. Brincou com as mãos, coçou um dos olhos e depois executou novamente o sinal de esquecer, passando sua mãozinha sobre a franja e a abanando suavemente, feito a fizesse dançar, feito imitasse uma pomba branca que alçara longínquo voo.
_Prometo que não vou te esquecer. –ele rebateu. A voz era subitamente reforçada. Vibrava com uma certeza alarmante, ressoava no peito dela em um tom maior, a convencia sem esforço. –Quando eu voltar, irei dizer: sou eu, não te esqueci. Enquanto isso, não abra a porta para ninguém mais.
Rindo aprazida, aproximou-se e colocou sua cabeça no peito dele, abraçando-o, pedindo que fosse correspondida.
O corpo dela tinha uma temperatura deliciosa, relaxante, e o perfume de alfazema que sempre permeava o ar provinha dos cabelos dela. De leve, ele a tocou com sua mão livre. Não havia esperado por tanto, não contava que suas palavras – tão fáceis de serem infundadas e superficiais – fossem levadas tão a sério e tão celebradas por ela. Ela não era uma criança do mundo, a confiança dela era uma coroa de louros facilmente obtenível.
Endireitando-se um pouco, ela ofereceu-lhe seu sorriso mais meigo e pleno, e, temerosa, alisou o rosto dele com as pontas dos dedos só por um segundo, cobrindo-o de seu fito mais amoroso.
_Agora, abra a porta para mim. –sem jeito, abriu espaço entre eles, o coração vacilando no peito.
Buscou sua lamparina e aguardou ela desobstruir a passagem. Deixando a cela, parou pra escutá-la trancar a porta com todas as três voltas da fechadura antes de sair dali, apagando com um sopro ríspido a luz de sua lâmpada.
Como iria descobrir o nome dela? Quem o informaria ou lhe forneceria uma pista?
Envolver-se naquele enigma era inútil, será que não sabia? Acabaria perdendo a vida ou a sanidade.
E por que será que esse pensamento não o assustava ou o desestimulava?
E por que será que, mesmo lhe subindo, esse pensamento não jazia nele?
Tudo era superado por uma inquestionável e inexplicável promissão: faria qualquer coisa para libertar aquela garota.
Sentia que valeria a pena.
Como já escurecera em seu aposento, ela foi se deitar. Para isso, havia uma majestosa cama de dossel disponível, cujo cortinado pesado era salpicado de brilho, feito tivesse sido filigranado. Contudo, não sentia sono, não tinha motivos para estar cansada. Queria apenas deitar-se e assistir as velas queimarem até desaparecerem enquanto pensava nele, nas palavras doces que ele pronunciara com rudeza e no olhar perfurante que ele lançava sem esforço.
Heero – disse seu nome, inaudível.
Esperaria por ele como nunca esperou ninguém. Sonharia com ele como nunca sonhou com ninguém. Imaginaria ele pronunciando seu nome, a palavra secreta, a senha de sua liberdade, como ele nunca fora pronunciado por ninguém.
Aquele era mais um dia em que não chorava até adormecer. Podia ser somente o segundo, mas ela já se esquecera de que era triste e sozinha.
Com seus tratos no castelo, Heero investigou se alguém desconfiava dele e de sua descoberta. Contudo, a cozinheira, o cocheiro, o cavalariço e os outros empregados nada pareciam ter notado de novo nele ou em seu comportamento. De fato, sabiam pouco, como se esperaria de serviçais de um nobre tão enigmático. Nunca mais Heero encontrou o barão, mas suas tarefas o levaram novamente àquele gabinete oval onde tiveram seu encontro. Meses o separava daquele dia e já duas semanas e meia o afastava da criatura mágica escondida naquela sala e ele esperava que o gabinete pudesse oferecer algo com que ele retornasse para ela. Não encontrou nada na biblioteca ou entre os tesouros das últimas salas em que trabalhara.
E, de fato, deparou-se com um caderno interessante sobre um aparador. O retrato do barão vigiava a sala inteira e bem debaixo da guarda vulpina dele, o rapaz aproximou suas mãos da capa de couro do volume e a moveu.
_"Para que alcance meu final, percorra cada página. Não ignore uma linha e não avance uma palavra." –leu em voz alta. Era o que a primeira página trazia. Assim, virou a folha.
Na próxima lauda, um nome, "Chiara", e muitos números. Ele correu a vista por cada dado, concentrado. Na borda inferior da página, registrara-se que Chiara tinha gerado um valor expressivo em pedras e que tinha partido precocemente, aos quarenta anos.
Puxou a página, mas ela não se desprendeu das demais. O encadernado pulou das mãos dele, caiu no chão, se fechando. Ao recuperá-lo, Heero releu as duas primeiras páginas e deu-se conta de que se esquecera de observar:
_"Que descanse agora em paz."
Assim, seguiu para a próxima página.
Outro nome, mais registros, dessa vez, muitos, que se estendiam por boas quatro páginas. Pelas informações que adquiria, ele entendeu que a probabilidade do nome da prisioneira estar assentado ali era alta. Só seria trabalhoso encontrá-lo.
Terminou sua atividade por ali e foi jantar. Quando o castelo adormecesse, buscaria o caderno.
A menina sentava-se no chão e suspirava. Percorria as prateleiras de sua estante com a mirada desanimada, encontrando os velhos livros inúteis de criança que lhe ensinaram um pouco das letras, os brinquedos antigos de madeira que a distraíram por muito tempo, as velas novas de reserva, o jogo de bandeja de metal e o óleo de alfazema e não sentia prazer em nada.
Queria colocar-se bonita para quando Heero retornasse, porém não possuía um espelho, uma escova, um grampo sequer. Correu os longos cabelos dourados com as mãos e praticou trançá-los. Usava os desenhos diminutos de princesas nas cartilhas como modelos.
Era assim que se entretinha, cultivava seu carinho e sua esperança.
_Sou eu. Não te esqueci. –um sopro do vento trouxe para ela aquele anúncio. Sem esperar, ergueu-se e virou a chave três vezes e fez a porta descerrar.
Heero esgueirou-se para dentro debaixo de uma capa de sombras.
_Feche a porta.
Ela obedeceu.
Ele descobriu-se e mostrou-lhe o caderno, explicou sobre suas suspeitas de achar o nome dela ali.
_Vamos vê-lo durante a madrugada e antes de amanhecer, vou devolvê-lo a seu lugar. Não podemos criar dúvidas. Faremos o mesmo amanhã à noite. Faremos o mesmo até descobrirmos a verdade.
Ela assentiu e buscou uma vela. Preparou para eles um lugar, lançando sua manta no chão e trazendo seus travesseiros. Acomodou-se neles e chamou Heero com as mãos.
Sentando-se com ela, abriu o caderno e percebeu que não era mais necessário ler as páginas daquela tarde para seguir o estudo. Passou a ler em voz alta todo o conteúdo que as folhas ofereciam. A menina estava presa em cada palavra. Deitou a cabeça no ombro dele, de modo que podia ver as letras lindamente marcadas no papel envelhecido. Ele falava de números e muito dinheiro. Vários relatos traziam informações sobre lugares, mencionava casamentos, até mesmo genealogias.
Passaram uma semana estudando, mas não importava quantas folhas eles virassem, o caderno nunca mudava de espessura de modo que era impossível saber quando e se chegavam perto de seu final.
Juntos, percorriam milênios de história de um povo que nenhum dos dois imaginara existir.
Ela às vezes tinha impressão de ver algo familiar nas narrativas e nos nomes, dando-se conta de que suas lembranças de sua origem também haviam sido apagadas. E sentia-se extremamente entristecida pelo sofrimento que seus semelhantes atravessaram. O dom especial que ela possuía sendo tão mal usado pela ganância alheia soava mais como uma espécie de praga. E ficava meditativa. Por outro lado, aprendia tanto! E ficava ainda mais interessada pelo mundo que a aguardava longe daquela cela.
Heero também se via espantado com o que descobria. Aquelas fadas, nem sabia se podia chamá-los assim… um povo sobre o qual nunca ouvira falar a tempos estava sendo explorado e nunca ninguém fez nada para mudar ou impedir. Seu senso de justiça gritava a cada detalhe que colhia sobre as mortes precoces, as capturas… como o barão conseguia deitar a cabeça no travesseiro e não pensar na forma desumana que fora usada para acumular a fortuna que lhe pertencia? Ficava preocupado se os fatos não chocavam a menina. Às vezes a via levar a mão à boca, pensativa e admirada. E seu desejo de cuidar dela e libertá-la somente aumentava.
Quando se cansava de ler, colocava o caderno de lado e tentava conversar com ela. Nem sempre compreendia os gestos dela, mas estava pegando prática. Em alguns momentos, ela o fazia rir com a combinação de graça, infantilidade e desembaraço naturais que usava pra se comunicar. Era uma das poucas pessoas que conseguia arrancar dele um pouco de alegria espontânea.
Aquela era a parte que ela gostava mais: ouvi-lo rir. A companhia dele lhe fazia tão bem… a existência dele fez toda a diferença para a dela, permitiu que finalmente usufruísse dos prazeres simples da amizade, do carinho, da troca. Amava deitar a cabeça no ombro dele, sentia-se finalmente pertencendo a algum lugar, principalmente enquanto ouvia-o contar alguma lembrança que a leitura por acaso suscitara. O jeito de ele falar sobre si mesmo era um pouco tímido, embotado, mas a voz não oscilava. Várias vezes ela acabou dormindo escutando-o, tão satisfeita e tranquila ficava ao lado dele, debaixo da sebe da voz rouca e sedutora que ele tinha.
Ele já não estranhava mais o contato físico com ela. Ao senti-la sentar-se com ele, no chão ou na cama, e se encostar e apoiar, não mais ficava sem graça, e sentia o calor dela e brincava com mechas de seu cabelo. Tê-la junto de si se transformara em tamanho hábito que ele achava-se terrivelmente deslocado ao deitar-se em sua cama depois de deixá-la no fim da madrugada.
Ela também. Assim que ele partia antes do romper da aurora, ela se encolhia na cama e suspirava, tentando preservar um pouco da temperatura dele e da impressão do escutar de leve as batidas daquele coração.
E o caderno não acaba nunca.
Saber que era impossível descobrir quão perto da verdade sobre si própria se localizava a estava atormentando. Aos poucos, sedimentava-se no peito dela um pânico que logo a aterraria com desesperança, por mais esforços que desprendiam na tarefa.
Heero também tinha seus receios. Alguém acabaria por estranhar ele demorar-se tanto em suas tarefas e pensava se viveria o suficiente para terminar a leitura daquele livro amaldiçoado.
Assim que ele entrou na cela aquela noite, recebeu a garota nos braços.
_Não fique assim. Não podemos desistir.
Estava inquieta e resistindo à leitura do caderno, meneando a cabeça e querendo mostrar o quanto estava cansada da situação. Tinha passado o dia todo calcando aquilo em sua mente, sofrendo por ver-se tão perdida.
Ele não ignorava o que ela passava. Não desejaria estar na mesma situação.
_Temos de acabar com isso, por você e por todos os outros. Além de que eu jamais serei feliz se não te libertar.
E com sua frase final, tão composta e denodada, arrancou um sorriso agradecido dela. Entretanto, isto não a impediu de irromper em prantos e, no segundo seguinte ao sorriso, Heero estava assistindo o estranho fenômeno da cristalização das lágrimas dela em perfeitas gemas.
Teve de abraçá-la apertado.
Ela enterrou o rosto no peito dele, esperando que seu calor a confortasse.
_Verá que tudo terminará bem. –ele murmurou, alisando o cabelo dela. –Não pense que não observo seu desespero. Você tem um bom motivo, mas não deixe se abater. Não vou te abandonar, não importa o que aconteça.
Afastando-se, ela sorriu debilmente, com um pouco da luminosidade do espírito recuperada. Fez o sinal que usava para "esquecer" e negou com um movimento de cabeça. Ele negou também. Não, jamais a esqueceria.
_Venha… –a levou pela mão e os dois se acomodaram na cama, sentando apoiados nos travesseiros.
Ela deitou-se no ombro dele e ficou encarando o teto do dossel enquanto ele retomava a leitura, mas por dentro ainda estava aflita e soluçou algumas vezes.
Vendo que não faria diferença nenhuma insistir na rotina, ele terminou por fechar o caderno e prestar atenção no silêncio junto dela, esperando que este a acalmasse um pouco.
Ela aninhou-se mais nele e pousou sua mão na dele. Soluçou, escondendo o rosto no pescoço do rapaz, aspirando assim intensamente o perfume amadeirado que ele usava. Seus dedos suaves tateavam os pequenos calos na grande palma da mão dele.
Pelo menos, tinha ele, raciocinou. Saber aquilo a fazia muito feliz. Se o destino a proibisse de escapar dali, já a tinha recompensado, porque lhe dera alguém que cuidava dela e lhe queria bem.
Sentiu ele se mover debaixo de si e por isso se separou, sentando no colchão, arrumando os cabelos atrás das orelhas. As velas não eram suficientes para clarear com precisão o rosto dele, contudo ela enxergava de algum modo que linhas brandas esboçavam a feição dele, aliviando a tensão que sempre usava nas sobrancelhas. E os olhos, meio encobertos da franja, com mistério a chamavam para mais perto.
Heero colocou sua face mais próxima e levou uma mão a maçã do rosto dela.
Ela o imitou e alisou um dos zigomas perfeitos e angulares dele com doçura.
Ela nunca tinha sentido ninguém respirar e nem sentido a sua própria respiração daquele jeito, tampouco notara como batia seu coração. Algo novo estava acontecendo.
Permitiu-se contornar de leve a forma dos lábios dele. Prendeu a vista naquela figura ao passo que a delineava com as pontas dos dedos. Seus olhos se estreitavam e sua respiração desacelerava dentro de si e achava ser capaz de escutar o tremular das chamas das velas.
Balbuciou o nome dele e sorriu.
Heero tomou a mão que o afagava com cuidado e a beijou – primeiro as costas, depois os nós dos dedos e por fim a palma. Em seguida, tocou os lábios dela com os seus. Um roçar tão de leve, entretanto, o suficiente para levar ardor para seus rostos e dar a partida em seus corações repentinamente.
Era sem dúvida uma sensação especial. Ela não precisava compreender o que acontecia para apreciar e elevar como a melhor experiência que já tivera. Além do perfume, o corpo dele exalava uma tepidez envolvente e langorosa, como a que vinha da lareira durante os Invernos atrozes. Desejava sentir mais de perto. Beijou os lábios dele com meiguice, enlaçando seu pescoço.
Ele a beijou em resposta, comprovando a suavidade daquele tato. A boca dela sempre tivera um rosado natural e aspecto macio… era mesmo como se tivesse sido feita para beijar.
Sem pensar, uma mão dela passeou pela nuca dele, pela linha dos ombros. Entrou na gola e afagou suas costas. A outra brincava com os cabelos dele, a variedade das texturas a convidava sempre para mais perto. Sentia os músculos dele, tão firmes, que não se retraíam ao toque, mas pele encontrava pele ali como se se pertencessem.
O beijo que dividiam fervia, de intensidade imensurável, duração incontrolável. Ele exigia cada vez mais, prendendo-a pela cintura, ao que ela correspondia e concedia que ele fizesse como quisesse, porque ouviam apenas seus instintos.
Com relutância manhosa, ela descolou a boca da dele para respirar e fitou o interior da imensidão do olhar que Heero usava, procurando lá a mesma admiração e excitação que percorria todo seu corpo e enchia seus olhos e mente de cores e luzes. Por mais amplas que fossem, as íris dele eram escurecidas. Ela ficou pensando que o céu noturno devia se parecer exatamente com o que via nos olhos dele.
Ousada, esticou-se e beijou o pescoço dele, começando na gola camisa e subindo, um beijo de cada vez, até atrás da orelha. Ele enrolava uma mecha de cabelo dela entre os dedos, entrecerrando as pálpebras, demorando-se na onda de deleite que o lavava e levava. E se não bastasse o quanto ela o provocava com seus carinhos, depois de beijar-lhe o outro lado do pescoço, abriu distância, jogou a cabeça para um lado e limpou o próprio ombro e pescoço dos cabelos, insinuando a superfície nacarina para ele, aguardando a retribuição de suas carícias.
Ele sorriu, maroto e agradado, meneando de leve a cabeça. Seu lábio inferior estava entre seus dentes. Poderia resisti-la? Queria resisti-la? Sabia que ela não tinha ideia de que tipo de jogo criava… o que ela podia saber do amor? Tinha sido preservada do mundo por toda sua vida e ele desconfiava de que isso era muito mais anos do que os vinte e cinco da vida dele.
Não que ele conhecesse muito do assunto por sua vez. Sempre gastara seu tempo com o trabalho, despreocupado em conhecer pessoas, conservar amizades da infância, divertir-se e distrair-se como os outros rapazes da aldeia. O velho J, seu mestre, gostava que ele se dedicasse ao serviço, embora sem sucesso o incentivasse a ir à taverna e conversar, rir e dançar para variar um pouco, provocando-o que ele enlouqueceria uma hora ou outra se só tivesse como companhia mecanismos e tramelas.
Aquela era a primeira garota que sorria para ele cujo sorriso era notado. A única por quem se interessou e a quem prestou indivisa atenção.
Fê-la deitar-se. Seria tão bom ter o nome para ligar àquela face feita de ingredientes celestiais… entretanto, asseverava que mudaria isso e por enquanto não veria problema em chamá-la apenas de sua.
Nenhuma ação dele a surpreendia. Rendia-se fácil e espontaneamente. Ele era tudo que queria. Entendia que ele pensava o mesmo sobre ela.
A boca dele passeou pelo pescoço dela, pelos ombros e pelo colo, banqueteando-se na faixa de pele semelhante à madrepérola que o decote do vestido revelava.
Só havia silêncio no mundo além deles dois.
Debruçado nela, só pensava nela. E de repente, vislumbrando aquele semblante, qualquer coisa na forma dócil de ela fitá-lo, nos lábios entreabertos, no modo ofegante, fê-lo pausar.
Aquela era a última chance de parar e escolheu aproveitá-la, mudando sua ideia. Não tinha coragem de ir mais longe com ela. Seria a mesma coisa de se aproveitar, porque não podia oferecer nada a ela que não fosse o prazer do amor. E não era justo. Heero poderia sair dali quando bem lhe aprouvesse, mas ela era eterna cativa. A virtude de mulher era a única coisa que ela tinha.
Beijou-lhe a testa e se deitou a seu lado.
Ela ficou um pouco confusa.
Olhou para ele, querendo decifrar que motivos o haviam visitado e transformado. Aguardou que explicasse, mencionasse algo, porém tudo o que ele ofereceu foi silêncio.
O que tinha acontecido?
Todo o ardor que fora despertado ao longo de seu corpo seguia ainda e seu coração estava ansioso. Só queria ficar com ele e senti-lo… o porquê disso não lhe preocupava. Só desejava viver de novo aquela emoção extraordinária…
Deitou-se no peito dele e ficou esperando. E era tão confortável ali. De pouco em pouco, foi relaxando. A felicidade seguia intocada. Adormeceu, assim.
Heero ficou com ela mais uma hora. Sentia que ela dormia. Devagar, colocou-a no travesseiro, cobriu-a e, apanhando o caderno, deixou a cela. Retornou o caderno a seu lugar no gabinete e foi para o quarto. Queria pensar.
Não havia mais nada para impedi-lo de saber-se apaixonado e não sabia se conseguiria ficar sozinho com ela outra vez. Queria ser sensato. Contudo, os apaixonados são tolos, e se tão por pouco ele perdeu-se em seus sentimentos, sabia que a próxima vez seria ainda mais difícil resistir. Era preciso se recompor.
Dormiu três horas, tomou um desjejum breve e foi trabalhar. Já não havia muito que fazer, estava procurando motivos absurdos para desmontar as fechaduras, para forjar peças novas… na próxima madrugada, seguiu sozinho na leitura do caderno. Fez o mesmo na noite seguinte.
Tinha terminado um longo relato sobre os fatos da vida de uma daquelas criaturas, cujo resgate fora tentado, mas terminara em arrasadora derrota. O barão guerreou contra o grupo de busca e recuperou sua prisioneira, que depois de quatrocentos anos, veio a falecer. Treize dominava sobre eles, devia usar de algum feitiço, conhecia algo que os vencia… Heero lamentava muito por tudo…
E ao virar a página, finalmente encontrou uma folha em branco. Chegara ao fim.
Como podia ser?
E os registros da garota na cela?
Depois de um estudo mais atencioso, deu-se conta que a página em questão havia sido rasgada.
Jamais antes havia experimentado frustração igual.
Levou uma mão a testa, depois esmurrou a mesa.
Levantou-se e decidiu ir notificar a moça da nova provação.
Mesmo assim, ele não ia desistir.
Apanhou o caderno e apressou-se para a porta dela, olhando sempre os lados, certificando-se de que não era seguido ou percebido.
Bateu na porta e disse a senha:
_Sou eu. Não te esqueci.
Meus sinceros agradecimentos a cada leitor dessa nova série.
O título alternativo deste conto foi gentilmente criado pela Lica.
Não deixem de expressar suas opiniões a respeito de sua leitura. Ficarei imensamente feliz e motivada por saber suas impressões!
Carinhosamente,
A autora
29.11.2012
